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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

6) A Triplicidade Cotidiana

Carlos U Pozzobon

Afinal, existem os 3 sistemas sociais como uma realidade cotidiana brasileira ou tudo isso é apenas um exercício teórico? Se você acha que não, provavelmente reside numa cidade ou região pouco populosa. Considere uma cidade grande brasileira. Ao dirigir um automóvel, você encontra pela rua os catadores, com seus veículos primitivos, os ferros-velhos andantes queimando óleo, as favelas e os muquifos. É o subcapitalismo, estúpido. No meio, a classe média que leva o fardo das incompetências urbanas, e, do outro lado, os que dispõem da mais completa impunidade para transgredir as normas impostas à classe média — são os veículos dos "exceções" à norma e dos chapas-brancas. É o semicapitalismo em sua expressão gloriosa.

O assunto impunidade volta e meia vem à tona detonado por algum caso que ocupa as manchetes dos jornais. A impunidade é apenas o resultado de um sistema construído para abrigá-la, e não uma irregularidade moral, como se quer convencer a população. Ela ocorre porque não existe uma ética para os 3 sistemas: o subcapitalismo, o capitalismo e o semicapitalismo têm sua própria ética. Ética é uma invenção do capitalismo, lapidada pela regulamentação incessante. O mundo feudal também tinha sua ética, baseada na lealdade e na honra. No caso brasileiro, temos como exemplo as condenações impostas pelo Supremo Tribunal Federal a deputados, senadores, ministros e outros, onde correm processos e mais processos e ninguém é condenado. Isso não é por acaso. Essas pessoas estão ali para desfrutar da impunidade e dela se aproveitar. Elas estão sujeitas à outra ética, que não é a ética da modernidade, da justiça cega, porque sabidamente inferior ao sistema criado por e para essas pessoas. E isso é basicamente a dificuldade de modernização do país. As reformas não avançam porque precisam cortar confortáveis privilégios, e assim ficam relegadas às calendas. Como sair do círculo vicioso?


Carlos U Pozzobon

1a farsa: Democracia x Oligarquia

A diferença essencial entre democracia e oligarquia está na relação de autoridade entre os eleitos e o aparelho de Estado. Uma democracia nasce do pressuposto de que o povo elege seus representantes para administrar o Estado, segundo seus programas e incumbências.

Em uma oligarquia, as coisas são um pouco diferentes. Os eleitos não só não podem mexer na estrutura para a qual foram designados, como também possuem prerrogativas especiais para se beneficiar dela própria, caso contrário, não mereceriam esta classificação. Uma oligarquia é por definição uma entidade coletiva criada em torno do ente representado, porém separada do resto da sociedade por normas e regulamentos exclusivos.

Para se constituir uma oligarquia é preciso que um amplo conjunto de leis estabeleça os critérios pelos quais a classe oligárquica se diferencia do resto da sociedade. Se os regulamentos forem iguais para todos, o regime é democrático. Se forem diferentes, é oligárquico.

Estas afirmações servem para que dispensemos recursos retóricos ao denunciar a farsa que nos impuseram com a Constituição de 88. Sob o embalo das eleições diretas, e o elixir da liberdade de organização, criou-se um monstruoso regime. Monstruoso não pelos seus feitos, pois pior do que um regime organizado para quase nada fazer é o grau de adesão capaz de arregimentar seu pretexto de legitimação. E se a sociedade carnavalesca saudou a ditadura militar como o fim de uma era, sem suspeitar que o regime apenas continuava como tal, é porque existe uma monumental quantidade de empregos em que o faz de conta é a ordem do dia. A gente não se ilude se não vive uma atmosfera dissimuladora, que faz com que o Brasil colonial continue a despeito da extraordinária patetice intelectual de seus mais nobres representantes.

A cultura oligárquica não é privilégio só do governo: em todas as formas de organização social encontramos o mesmo espírito de patota, de descaso para com o público representado, de completa indiferença quanto à obrigação de transparência e com inclinação patológica para a manipulação e o grupismo.

A verdadeira administração pública é aquela embasada no tom fornecido pelos dirigentes eleitos. E por isso não adianta ficarmos falando no descalabro da burocracia, se esta jamais será contida enquanto os próprios burocratas não estiverem acossados pela possibilidade de demissão. Uma nova ordem social, que libere as energias criativas do empreendedorismo não é compatível com a ordem burocrática cadastrativa e castradora atual porque seus agentes estão encastelados por cima do poder do voto. Eleger representantes para dispensar os entulhos vitalícios é a medida mais elementar da democracia. Sem este poder, todo o aparato eleitoral é mero ornamento a serviço do estatismo.

Já se escreveram milhares de páginas sobre isso e parece que nada ainda foi dito. Insistimos neste ponto: o melhor serviço público é aquele em que o agente executor não tem muita certeza sobre o seu destino, isto é, ele está numa situação de ser intercambiável com a sociedade. Aí, e somente aí, quando sociedade e Estado forem intercambiáveis é que teremos a eficiência do serviço público.

Naturalmente não é isso que se propaga aos quatro ventos no Brasil. Por aqui, o argumento basilar é: nossos políticos são uns crápulas. Se o Estado ficar sob a mão deles, o país se dissolve. Eles acabam com a Nação. Eles liquidam com a ordem social. Eles arrebentam com os poderes republicanos. Estas baboseiras não partem do princípio de que nossos políticos são calhordas exatamente porque não têm o poder de demitir os intocáveis (como pessoas físicas), mas o de exercer o mandonismo total sobre os recursos da instituição. Todo mundo sabe que qualquer político honesto — os poucos que existem — fica basbaque com os métodos e procedimentos dos carrapatos orçamentívoros que sugam os recursos públicos à exaustão. Com isso, aderem ao faz que não vê, ao deixar a coisa correr solta.

Por acaso a oligarquia são os ricos? Por acaso os oligarcas são milionários enfatuados e cínicos? Uma oligarquia é um conjunto de pessoas que sabe que a ascensão social está na esperteza dos cartórios e não no esforço individual. Eis aí a natureza da crise ética do Brasil. São oligarcas os sindicalistas que saem dos tornos mecânicos para a política, os portuários que saem do nada para os superssalários das brechas da legislação, os práticos das beiras de cais, os beneficiários dos seguros obrigatórios, os despachantes da política, os petroleiros que ganham adicional de insalubridade sem nunca sair do ar condicionado dos escritórios, a gama imensa de pessoas simples catapultadas para a fortuna dos cartórios.

Uma oligarquia é pois um poder permanente que é compartilhado por todo aquele que atinge a conquista do cargo, e para o qual seu primeiro dever é respeitar os privilégios dos outros que lhe são afins. A oligarquia é este ser coletivo, esta máquina burocrática que se coloca acima do resto da sociedade e para a qual tem seus próprios pesos e medidas. E que se encarrega de julgar a si própria, de empregar os parentes, de reivindicar independência financeira, de determinar as próprias mordomias e benesses insufladas pelo ego coletivo da auto-importância. Logo, a impunidade que nos grassa moral e fisicamente é apenas requisito de uma classe que não pode ser mexida, que não pode ser dispensada e sobre a qual a política fala de suas consequências como se a causa maior, a estabilidade e vitaliciedade no emprego sequer existissem. Ora, isso não é elite !

Associar oligarquia com elites é uma das nossas tragédias de infantilismo intelectual. A conquista de um superssalário, o pulo da fábrica para o sindicato e dali para o Congresso, a ascensão do chinelão para a câmara de vereadores, do portuário em empregador de mão-de-obra, do despachante em deputado, do funcionário com 2, 3, 4, 5 contracheques mensais, comprova que a oligarquia é uma classe que vive do sistema de distribuição de monopólios pelo Estado. Eis porque não se combatem os monopólios no Brasil ! Não se combatem porque a essência do nosso sistema é um Estado parasitário comandando uma enorme economia de monopólios consentidos. A isto chamamos semicapitalismo, uma incoerência com a democracia e com o capitalismo que só consegue ser equilibrada à custa da grande aliança mistificatória mantida pela Frente Única das mais antagônicas ideologias políticas no mundo ocidental — mas que no Brasil termina sempre no mesmo tom. A direita e a esquerda em aliança ao sabor da conjuntura do deixa como está para ver como é que fica.


2a Farsa: Direita x Esquerda

Uma das categorias superadas do pensamento político nacional insiste em sobreviver nos blogs de jornalismo e nas discussões acadêmicas — a de esquerda e direita. Na década de 80, este pensamento foi contestado pela nova geração de intelectuais, como um acerto de contas com os acontecimentos relativos ao 68 francês. A questão que se coloca não mais se situa no elenco de políticas conservadoras ou revolucionárias, mas de relativismo político que também se situa nos jargões habituais de socialismo e democracia.

Como o socialismo foi por muitos anos associado aos modelos soviético e cubano, as pessoas fugiram do socialismo como o diabo da cruz, pois as implicações de liberdade individual são mais severas do que de sistema político.

No Brasil, a formação política básica da geração de 68 era a de oposição à ditadura. A ditadura era entendida como um governo de direita, que se baseava em um sistema eleitoral fortalecido pelo populismo político, o assistencialismo econômico e a expansão do Estado pelos empreendimentos empresariais públicos.

Isso por si só já criava um relativismo político. A esquerda tradicional defendia a estatização furiosa, mas não o clientelismo. Hoje em dia assumiu todos os vícios da ditadura, e ainda piorou alguns deles.

O aspecto mais importante do discurso da chamada “esquerda” era sua oposição ao capitalismo, embora não se soubesse bem o que isto significava para a esquerda. Em termos gerais, eram a propriedade privada e as empresas particulares. Mas, analisando mais detidamente, eram propostas de estatização total da economia, portanto, um modelo já conhecido de socialismo insano. Para outros, entretanto, a questão era diferente — a esquerda era a ampliação da democracia, saindo do formalismo (adjetivado como “burguês”) para situar-se dentro de uma dinâmica de maior participação popular. Mas isto também continha um retrocesso político, pois a tal de participação se limitava a discursos populistas e práticas clientelistas, um recurso usado pelo velho conservadorismo nacional.

A noção de que a sociedade era basicamente atrasada, e que necessitava de transformações, era consenso nos anos 60. As propostas desse progresso, entretanto, nunca foram muito claras. As pessoas que tiveram uma educação tecnológica sabiam que o lado mais dinâmico das transformações estava no progresso tecnológico, embora opiniões contrárias advertissem para os cuidados com tais posições, pois que o progresso técnico não levava necessariamente ao progresso humano, e isso se revelou totalmente equivocado. Até agora não se sabe de progresso que tenha desviado a humanidade como um todo para trás. Tenho consciência de que acidentes tecnológicos, principalmente na área nuclear, devastação produzida por armas sofisticadas nos conflitos mundiais, do inaceitável extermínio de populações em uma época em que as informações correm soltas pelo mundo, são mais uma tragédia política, isto é, decorrentes mais da falta de progresso político que do avanço tecnológico em si. Ademais, o fim da guerra fria já serviu de alívio para a principal tensão mundial — o extermínio nuclear.


Exploração x Cooperação

A diluição dos conceitos de esquerda e direita guarda uma relação com a globalização, as tecnologias de Internet, as conquistas da medicina e biologia, a revolução nas técnicas de cultivo, os novos fármacos, o avanço na utilização de energias alternativas, principalmente as renováveis como energia solar, eólica, biocombustíveis, e com o consenso em torno da preservação ambiental.

O sonho original de uma sociedade sem classes, patrimônio dos socialistas, não se concretizou nos estreitos limites do estatismo, mas na sociedade high-tec que fez mais pelo desenvolvimento de novas formas de trabalhos colaborativos e voluntários do que centenas de obras de pensadores e filósofos de esquerda.

A democracia, como sistema de valores, mais do que como forma de governo, ainda se encontra em fase embrionária nos países emergentes. Este site tem procurado demonstrar que democracia é outra coisa do que se fala por aí. De fato, a primeira constatação é que somos um sistema de origem monárquica materializado na cultura estatal, e com necessidade de seguir a democracia como obrigação dissimuladora de inserção na totalidade mundial, e não como essência igualitária em direitos, princípios sociais e educação.

A defasagem fica por conta da necessidade de mascarar esta diferença essencial com a roupagem das ideologias de todas as formas e construções mentais. Tanto o liberalismo como o socialismo brasileiro contêm os elementos dessa terrível mistificação, e nunca se sabe quando vamos sair desse beco sem saída. Enquanto isso não acontecer, a luta política entre esquerda e direita vai ser apenas um teatro cujo resultado será sempre a ocupação do aparelho de Estado para perpetuação das mesmas práticas atrasadas.

Portanto, se o relativismo é a essência da política, no Brasil nunca conheci um esquerdista que subscrevesse as recomendações de Marx e Lenin pelo fim do Estado, a menos dos lugares comuns da hipocrisia proselitista. Isso acontece porque no Estado brasileiro está a acomodação paradisíaca para os mais diferentes padrões humanos de detestável procedência feudal — o parasitismo, a incompetência, o protecionismo, o pilatismo e a acomodação.

No terceiro mundo, existem casos psicológicos típicos de comportamento ideológico. Se você é uma pessoa sem autoconfiança, com tendências à preguiça congênita, então é muito provável que vá defender uma certa linha do esquerdismo que se resolve no estatismo. Ali vai encontrar abrigo e proteção. Entretanto, se você é um liberal burocrata, com ambições econômicas, então o estatismo é seu caminho natural, pois é onde vai encontrar as oportunidades mais fáceis, o protecionismo econômico, os empréstimos fáceis, a honorabilidade institucional, isto é, o verdadeiro mercado brasileiro. Em consequência, pode-se dizer que — no Brasil — todos os caminhos levam a Roma, e o debate entre esquerda e direita não passa de mera diferença doutrinária, sem nada que comprometa o status quo do sistema. Nada mais semelhante ao regime militar do que o governo atual: corrupção deslavada, proteção a fraudadores, empreguismo descarado, assistencialismo eleitoreiro, falta de escrúpulos político, patrimonialismo sem limites, fraudes contra o próprio Estado que lhe serve de suporte, negociatas com o interesse público, a cara-de-pau, o mandonismo, o constrangimento articulado para silenciar adversários, e por aí afora. A única revolução que existe no horizonte é o desmonte do Estado patrimonialista, e ela só pode ser implantada com a passagem para o capitalismo avançado. Mas não é isso que quer a metade do PIB do país.


Monopolistas x Competidores

Mas a grande diferença do pensamento político nacional, se penetrarmos abaixo da crosta superficial dos lugares-comuns, não está entre esquerda x direita, mas entre monopolistas e competidores. Pessoas da chamada "esquerda" normalmente acham a competição sem qualquer importância, tanto é que defendem monopólios estatais como representantes da nacionalidade brasileira. À "direita", também encontramos o mesmo sentimento — nos tempos da Varig, a propaganda tinha o refrão "Varig, a nossa Varig". Os militares foram os campeões da estatização e, curiosamente, hoje são invejados pelos esquerdistas no governo, que tudo fazem para ampliá-la.

A reação (eis aí os reacionários) resultante de qualquer proposta de privatização no Brasil tem suas causas no mito do Estado como representante da nacionalidade, e no fato de que estatais são instrumentos para os partidos políticos empregar um grande contingente de cabos eleitorais (que, como seus chefes, circundam a política por falta de competência para o mundo privado). Sem esta enorme máquina, não há empregos para amigos, parentes e correligionários.

Qual a diferença entre duas posições políticas se, ao se alternarem no poder, ambas mantêm a mesma estrutura burocrática estatal e nenhuma delas aponta para uma ruptura com o status quo vigente? É que uma ou outra se apoia em uma mise-en-scene de lugares comuns que lhe dão um tom de esquerda ou de direita, mas que, na prática, não têm nada de antagonismos, pois o que existe não é esquerda nem direita, mas um sistema que se pretende manter e ampliar. Naturalmente, há controvérsias, e bem que podemos atribuir a ambas um formidável estoque de obscurantismo.

Outra diferença está entre progressistas e regressistas. Nos anos 60/70 era costume classificar as pessoas entre progressistas e reacionárias. Naturalmente, os auto-intitulados progressistas é que chamavam os oponentes de reacionários, embora estes nunca se considerassem como tal. Mais tarde, descobriu-se que os então progressistas eram na verdade retrógrados, e esta inversão não custou barato para a vida política nacional.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

3) Mentalidade Estatista

Carlos U Pozzobon

A mentalidade semicapitalista é totalmente diferente do mundo capitalista porque ela sempre conleva o descaso com a produção e o progresso material. Às vezes essa indiferença torna-se até mesmo oposição visceral a tudo o que signifique progresso. Para intelectuais dessa espécie verde-amarela, a noção de progresso é substituida pelo sentimento de conservação de riquezas naturais.

Enquanto para o capitalismo avançado a exploração dos recursos está interrelacionada com a riqueza social como um todo, para a mentalidade verde-amarela ela é uma atividade moralmente inaceitável. Considere, por exemplo, um dos mais prestigiados acadêmicos uspianos, o geógrafo Aziz Ab'Saber. Para ele, a privatização da Vale do Rio Doce foi um crime cometido contra o país porque "na Amazônia, há o último grande distrito mineral descoberto no século 20, com ferro em quantidade, um pouco de ouro, prata, nióbio e urânio. Agora com as imagens de satélite, sabemos que não há possibilidade de achar outro igual. Privatizar e perder o potencial econômico disso foi muito ruim... Quando estive na França, algumas pessoas correram para mim e disseram: 'professor, diga aos seus colegas que é muito triste saber que o minério de Carajás, comprado a preços aviltantes, serviu para fazer o túnel do Canal da Mancha' " (OESP, 19/12/2004, p.J-3).

Este raciocínio, uma das pérolas do nosso atraso, diz tudo: o minério de ferro não é vendido pelo seu valor de mercado, mas a um valor insignificante, e quando não explorado é melhor do que explorado, pois representa uma reserva para o futuro. A mentalidade de reserva para o futuro é essencialmente brasileira (e de povos subdesenvolvidos), o que enlouquecia Monteiro Lobato nos anos 30 — que arrancava os cabelos com a lentidão do Brasil para se flagrar de que o desenvolvimento econômico tinha que ser imediato.

O país do futuro que guarda suas riquezas para o futuro

Imagine se, por alguma razão, os ingleses se arrependessem de ter vendido seus parcos minerais para a construção da Estação da Luz (SP), ou se os os belgas tivessem derramado lágrimas por ter transformado o seu aço nas estruturas do Viaduto do Chá (SP). Lobato dizia entretanto que o Brasil não deveria exportar minério, mas sim aço forjado, e até citava a diferença em números para a época. Quanto à conservação dos bens para proveito futuro, esta pérola do raciocínio subdesenvolvido, Lobato se perguntava se Cunhambebe deveria, em 1499, ter poupado suas pacas para os netos, em vez de comê-las naturalmente, privando Cabral, um ano depois, de um churrasco e tanto.

Consideremos, por exemplo, o caso da Amazônia, onde esta mentalidade é a causa primeira da devastação, manifestada sempre com o mesmo procedimento: você têm uma superfície contendo uma riqueza vegetal inigualável, seja como biossistema, seja como subsolo, mas não tem a propriedade, ou tem documentos forjados de propriedade. A consciência dessa precariedade liquida com o capitalismo no seu subconsciente de explorador, mas mesmo assim você deseja explorar para se beneficiar da riqueza. Se fosse proprietário legalizado e lhe fosse permitido explorar, você como capitalista teria que desenvolver um método de transformar a exploração em algo contínuo, não exaurível no curto prazo. Mas pensar a longo prazo significa estar sentado sobre o trono da legalidade e não no tripé da incerteza, portanto, teria que racionalizar o uso da mata. Ali a mentalidade é outra — deve-se proibir terminantemente qualquer tipo de exploração e comercialização dos produtos da selva (a menos dos autorizados para os amigos), em consequência, é melhor queimar tudo e usar a terra para a agricultura. Logo, o que está acelerando a destruição da Amazônia é exatamente esta mentalidade punitiva, proibitiva, persecutória.

Alguém duvida do que fariam os suecos, canadenses e quetais se administrassem os bens da floresta? Teriam acaso a mesma irracionalidade dessa gente do Ibama? Ainda não se percebeu que a depredação é resultado do modelo de Estado? Como pretender que exista uma atividade econômica planejada, organizada, estruturada em um ambiente em que a propriedade foi fraudada, não tem dono ou dela nada se sabe? Como pretender uma economia no meio do bandoleirismo, da lei do mais forte e da intimidação? Como legalizar uma atividade cuja empresa precisa apresentar certidão negativa de débito com o INSS, o FGTS, etc, para um órgão que se localiza a centenas de quilômetros de sua sede?

Até quando vai continuar esta comédia da devastação ambiental? Até quando vamos continuar tendo que suportar tanta mentira? Pois se as causas da devastação estivessem apenas no povo que freneticamente abate árvores, então poderíamos pensar em resolver o problema com a prisão do povo amazonense, ou será que existe uma relação entre o povo e o Estado que lhe baixa o relho? Acaso não é a falta elementar de um modelo de legalidade (propriedade, segurança, desburocratização, regulamentação da exploração vegetal, etc) que precisa ser criado para salvar o que resta da floresta?

Diversas obras argumentam que o subdesenvolvimento é uma mentalidade.HARRINSON, Lawrence E. Subdesenvolvimento é um Estado de Espírito. BANFIELD, Edward. The Moral Basis of a Backward Society Mas, na verdade, o subdesenvolvimento não é uma mentalidade, é uma ciência, e uma ciência preciosa. Ela implica num alto nível de argumentação rocambolesca para conciliar interesses bem conhecidos com as práticas um tanto contrárias do capitalismo avançado sob o argumento de variáveis locais, ou de qualquer outra asneira. Lobato chamava de esoterismo científico as alegações de Victor Oppenheim (Departamento Nacional de Produção Mineral) de que não existia petróleo no Brasil.

Para todo o lado do panorama nacional, vemos o exercício vitorioso dessa prática. Um exemplo de esoterismo econômico é o tal de Comitê de Política Monetária (COPOM) do Banco Central, encarregado de definir a taxa de juros com que a viúva paga seus financiadores. O COPOM é o responsável pelo estado confuso do jornalismo econômico brasileiro.

Para o COPOM, os juros devem subir sempre que a demanda interna está muito elevada e "dá sinais de aumento inflacionário". Em qualquer país desenvolvido, o aumento da demanda interna é celebrado com salvas pelo crescimento econômico. Se a demanda interna diminui, os juros caem ainda mais para fazer as pessoas gastarem. Entende-se que uma inflação de demanda logo se acomoda mais à frente, e que, portanto, nem é preciso contar. No Brasil, como o semicapitalismo precisa competir (e triunfar) sobre o capitalismo, sempre que houver aquecimento da demanda, significa que o país está crescendo e "é preciso colocar um freio nesse progresso". E aumentam-se os juros.

Para essa mentalidade, o progresso é um veneno para o país. Logo a demanda cairá pela barbaridade do reflexo nos juros do crediário, e todos podemos ficar contentes. Com isso, aumenta-se em 3% a taxa de juros para derrubar em 2% a previsão de inflação. Existe alguma teoria econômica que suporte um procedimento desses?

Existem 4 ou 5 explicações para o Brasil deter o campeonato mundial de juros altos. Nenhuma delas contempla a verdadeira causa, por falta de espírito sistêmico: os juros são altos para que a remuneração dos financiadores (eu e você que temos uns caraminguás na poupança, e eles que têm os seus milhões) seja muito maior do que a remuneração da atividade capitalista. Convenhamos: se os juros no Brasil fossem, não digo chineses, de 0,25% ao ano — que graça, crescem 10% ao ano com estes juros e nada disso se fala por aqui, mas norte-americanos (3,5 a 5,5% a.a.), nossas elites iriam ficar muito inferiorizadas e até mesmo se verem obrigadas a investir neste maldito capitalismo. E, tremendo de medo do risco não dar certo.

Portanto, é muito melhor deixar o dinheiro no banco, quando a remuneração é melhor, do que fazer qualquer investimento produtivo. Ponto final. No Brasil, se alguém pretende baixar os juros deve em primeiro lugar eliminar todos os impostos embutidos neles. Os juros nunca vão baixar enquanto as taxas estiverem nos montantes brasileiros. Em consequência, o COPOM está para o mercado financeiro como o MST para a agricultura. Um combate o capitalismo pelos juros, o outro combate o agribusiness com a exaltação da jecalândia.

Podemos concluir que o parasitismo não é só um fenômeno estatal, ele é parte de toda uma hierarquia que descobriu uma maneira muito melhor do que empreender: viver dos juros do governo.

Se você algum dia pensou que os inimigos do capitalismo estão na esquerda — pode tirar o cavalo da chuva — a 'Frente Ampla' é muito maior do que você pensa. Enquanto isso, espera-se que um dia o Brasil descubra que sua saída está na ciência e tecnologia: quanto tempo vai levar para descobrir o caminho da virtude e decuplicar os investimentos nesta área? Talvez nunca. Talvez ciência e tecnologia sejam apenas um apêndice secundário da atividade econômica do Brasil.

Cultura da imitação

O semicapitalismo não produz (ou produz com custos oligopolizados), e portanto não lidera — é uma cultura passiva, que preenche a negação do empreendedorismo com banalidades. Ao acomodar modos de vida feudais com o presente, o semicapitalismo não possui interesses coletivos, não sabe se situar estrategicamente como sistema capaz de criar poder (no sentido tecnológico), e portanto se dissipa na imitação.

Mas a imitação representa um nível altíssimo de falta de autoconfiança. A imitação pura e simples é uma confissão de incapacidade de ter sua própria identidade, e identidade significa necessidade das elites de se basearem em si mesmas, em suas próprias atividades. A imitação quer dizer elites que não vivem do empreendimento, da transformação, da criação e da invenção, mas simplesmente da passividade ociosa do doutorismo e do rentismo.

Um dos 'chefs' franceses que fez carreira no Brasil — Laurent Suaudeau —, em entrevista ao Estadão (19-12-04), disse que não conseguia vender um de seus pratos prediletos 'pato ao tucupi' devido à rejeição ao nome do prato. Indignado com a sensação de sentir na pele o preconceito escancarado do brasileiro pelo que lhe é direito disse: "Lembro que tentei incluir 'pato ao tucupi' no cardápio e foi rejeitado. Só começaram a pedir quando mudei o nome para 'canard à l'essence d'orange'.

Este mesmo 'chef' depois afirmou que os pratos com nomes brasileiros começaram a ter maior aceitação. Mas não será uma situação provisória? Não será um interlúdio cultural pós-privatização? Aumente em 50 mil vagas o funcionalismo público e a nova geração vai rejeitar o 'pato ao tucupi'. Observe o presidente Lula e seu vinho 'Romanée Conti'. Não deveria um presidente 'representante do povo brasileiro' beber somente vinhos nacionais?


Relação entre sub e semicapitalismo

Quase todos nós crescemos ouvindo falar de estórias de água no leite e de mistura de milho no café. Provavelmente não exista uma cidade no Brasil sem uma fabriqueta de subúrbio destinada à fraude. A cultura da imitação não se trata apenas de uma retórica de gestos e mundanismo social, mas sobretudo de um modo de produção na sociedade. A imitação não é feita para colocar uma mercadoria em condições de competição no mercado, ao contrário, ela é endereçada a uma sociedade empobrecida que precisa dar preferência ao preço no lugar da qualidade do produto.

O modelo é quase sempre assim: uma grande empresa (em geral uma multinacional) lança um produto, digamos, uma fita isolante. Logo a seguir aparecem os produtos dos empresários nacionais, normalmente uma fita isolante sem cola, ou tão fina cuja película rebenta ou não chega a isolar, mas cujo preço fica em menos da metade da multinacional. Está feita a competição. Essa inversão só se justifica pelo endereçamento da mercadoria a uma sociedade empobrecida. O empresário então contempla sua mercadoria na prateleira e diz — "está vendo? consigo bater os gringos!".

Como mostra Lobato em 'A Fraude Bromatológica', nossa desastrada indústria de fundo de quintal não seria tão carente de qualidade e engenharia se não houvesse a montanha de taxas, emolumentos e impostos que colocam qualquer pequena empresa na ilegalidade. (Atualmente a ilegalidade venceu em 60% da força de trabalho, mas nem essa percentagem descomunal serve para mudar o sistema).


Vigiar e Punir

E se não houvesse o fisco municipal, estadual e os diversos fiscos federais a se fartarem com desmandos burocráticos no propinoduto da indústria de multas?

O resultado da baixíssima qualidade tecnológica, e do mau caráter generalizado de produtores, não se explicaria senão pelas relações predatórias do Estado sobre a sociedade. Se tivéssemos um Estado organizador, facilitador, voltado para o crescimento da produção e do bem estar social, muito pouco da cultura espetacular da fraude empresarial ocorreria.

Em vez disso, temos um Estado cujo modelo organizacional é punir, multar, confiscar documentos, prender pessoas, fechar estabelecimentos, seja no cumprimento de leis, regulamentos ou portarias da cultura papelífera doutoral. O resultado é uma economia paralela, escondida, desconfiada, improvisadora, desonesta, precária, como muito bem escreveu Lobato em 'A Fraude Bromatológica'.

FIM