sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

7) Regressismo

Carlos U Pozzobon

As causas do Regressismo

Existem muitos caminhos para entender o Brasil: nenhum deles avançará nesta tarefa se não for capaz de investigar as diferentes causas que fazem com que a mentalidade reinante seja a causa de seu atraso. Antigamente pensava-se que o subdesenvolvimento fosse produto ou dos imperialismos, ou da pobreza endêmica, ou de uma oligarquia safada, ou da falta de recursos naturais. Tempos depois começou-se a atribuir estas causas à má gestão do Estado, especialmente ao desperdício da administração pública.

A primeira causa que se deve mencionar pertence a tradição de aprendizado. O regressismo é um conjunto de idéias aprendido na escola. Faz parte do corpo discente brasileiro e do ambiente escolar. Na escola são selecionados os autores, pensadores, filósofos, sociólogos e demais intelectuais do atraso. Portanto, trata-se de uma formação intelectual estruturada. Duas ideologias colaboram para que o regressismo se assente nas faculdades intelectuais do brasileiro: o coitadismo e o vitimismo. No coitadismo somos ensinados a ter compaixão com os espoliados. No vitimismo nos ensinam que nossa pobreza é o produto do indefectível sucesso da conspiração alheia. As duas se unem para a formação do sarambé.

O regressismo brasileiro tem uma característica bastante interessante: ele se assenta sobre formas econômicas que sustentam uma oligarquia de fontes não relacionadas com o progresso social e a geração de riqueza tradicional. Apartada da produção e do capitalismo, esta oligarquia prosperou de forma impressionante e hoje dá o tom na vida nacional. Alguns autores costumam chamar de capitalismo de Estado, porque o mercado é percebido como uma economia dirigida por uma burocracia a quem todos dizem respeitar, mas que na prática serve para que despachantes de alto escalão se encarreguem das concessões autorizativas através do poder pessoal obtido na máquina estatal. Com isso se produzem os propinodutos. Os episódios Marcos Valério e Renan Calheiros demonstraram que as fraudes são sempre idênticas e se assentam nos mesmos mecanismos. Neste caso, elas seguem um comportamento sistêmico.

Na versão ideológica, o regressismo pode ser puramente destrutivo podendo chegar nos limites do fundamentalismo, quando, por exemplo, se dedica em combater toda a idéia nova que por alguma razão possa apresentar um aspecto negativo, descartando todo e qualquer benefício dos lados positivos desta mesma idéia. Neste caso, faz parte de uma cultura cuja atividade principal consiste em viver as custas do trabalho alheio, ou no mínimno, de fontes de recursos que não dependem da inovação e do progresso.

Mas não se precipite: o regressismo não é privilégio de ricos e doutores. Muito menos de políticos e burocratas. O regressismo fundamenta-se em uma ideologia propagada airosamente como um subproduto da vida amparada na tradição de monopólios e da economia dirigida. Quanto mais monopolizada uma nação, mais regressista são suas idéias.

Ele se materializa de todas as formas, e está presente em todos os setores sociais. Por exemplo: sempre que uma idéia nova aparece, como resultado do desenvolvimento científico e tecnológico, esta idéia é posta em circulação pela imprensa. Editoriais começam a falar do novo foco de desenvolvimento. Aos poucos, começam a aparecer as vantagens e desvantagens da proposta. Como toda idéia nova trás em si diversos fatores polêmicos, a singularidade do regressista é se colocar contra imediatamente. E, passo seguinte, arregimentar forças para as demonstrações da grita. Logo após, invadir os meios de comunicação com o sectarismo habitual das idéias definitivas. E por fim, fazer proselitismo através do terror intelectual. Neste momento a divisão social está selada. Não é mais coisa de meia dúzia de gatos pingados, mas faz parte do lero-lero dos movimentos sociais.


A beligerância do atraso

Enquanto as pessoas sensatas e com alta dose de razão instrumental mantém o tom baixo do balanço entre os aspectos positivos e negativos, a mentalidade regressista não se faz esperar, não admite evolução e superação de obstáculos: categoricamente, em alta-voz, se coloca na trincheira da beligerância talibânica. Considere o caso dos transgênicos. Como se trata de um assunto científico, a adoção de cultivos geneticamente modificados é um assunto polêmico para uma razão criada dentro dos padrões de ciência e conhecimento. Por um lado a prudência leva ao julgamento dos resultados obtidos. Se a técnica adotada na transformação de sementes mostrar-se nociva, joga-se fora e parte-se para a adoção de outro método. Se a técnica der resultados inicialmente positivos, continua-se a pesquisa para tentar descobrir algum efeito colateral maléfico, até que a tecnologia possa amadurecer e demonstrar toda a sua superioridade em relação as sementes tradicionais.

Isto é o que tem acontecido. Já se sabe que os transgênicos são muito superiores em todos os aspectos, inclusive ambiental. Além do mais, provavelmente dentro de alguns anos estaremos colhendo soja do tamanho de um grão-de-bico, com uma produtividade tal que será a única tecnologia capaz de atender a demanda mundial.

A expectativa é que os transgênicos representem um salto qualitativo para a humanidade em termos de tecnologia e rentabilidade, incluindo a superação dos malefícios da cultura anterior. Em outras palavras, a expectativa com os transgênicos nas principais lavouras era de um salto em que toda a gama de produtos consumidores de defensivos agrícolas altamente poluentes pudesse ser eliminada, proporcionando altos ganhos na preservação ambiental de lavouras e do meio ambiente.

Mas nada disso passa pela cabeça regressista. Sem nenhuma explicação factível, e eivados de moralidade pretensamente conservacionista, a consciência regressista logo se mobiliza contra o progresso. E, amparados na grande rede anticientífica — que vai da pura superstição até ao oportunismo dos subsídios governamentais regiamente pagos para a arruaça —, logo a sociedade vê-se as voltas com o constrangimento do progresso. Não sabe se o empirismo científico deve avançar e mostrar seus resultados pela razão científica, ou ser logo descartado pelo ignóbil fundamentalismo ambientalista.

A Reforma Agrária, uma proposta totalmente anacrônica com os atuais métodos de produção agrícolas dispensa maiores comentários. Os dados estatísticos mostram que o fracasso dos assentamentos está no conceito de agricultura familiar. A proposta de agricultura familiar só deu resultados em programas onde por familiar foi subentendido a pequena empresa, com 4 a 10 funcionários, como efetivamente desenvolvida no estado do Rio de Janeiro. A idéia de que a agricultura familiar (pai, mãe e 1 ou mais filhos) deve ser implementada para assentar o homem no campo é totalmente incondizente com as possibilidades de progresso. Mas que só pode ser mantida se o propósito é preservar as pessoas na condição social de marginalização em relação ao acesso a riqueza. Ou então servir para expandir a captação de recursos públicos para sujeitar as pessoas a uma posse em que elas só desejam como forma de repassar a terceiros e faturar uns trocados. Nesse caso, o mesmo impaludismo sistêmico vicejou como adubo germinativo das velhas práticas fraudulentas do assalto ao erário e os acampados não passam de massa de manobra de tubarões cevados nas negociatas sindicais. Vejamos o caso ocorrido no Assentamento Chibarro Jornal O Estado de São Paulo, 27/01/08 (pg. A12)

.

Como a ideologia conduz ao retrocesso

Os acontecimentos que ocorreram no Assentamento Bela Vista do Chibarro, em Araraquara, com o agricultor Valdeci Vieira França é apenas um caso entre dezenas de famílias beneficiadas pela Reforma Agrária dos anos 90. Valdeci recebeu um lote de 20 hectares e iniciou o plantio diversificado (feijão, milho, arroz, etc), mas não conseguia tirar dinheiro da terra. Plantava e não colhia, ou colhia muito pouco. A prosperidade parecia que não chegaria a sua família até que Valdeci começou a emular os grandes usineiros da região: passou a plantar cana-de-açucar. Aí veio a prosperidade: aí sim a Reforma Agrária passou a ser uma benção para a família França. Valdeci comprou trator, implementos agrícolas, automóvel, plantel de gado de leite e construiu uma casa de alvenaria avaliada em R$100 mil.

Não é verdade que a Reforma Agrária é uma iniciativa para retirar as pessoas da miséria e dar a elas uma vida digna? Não é verdade que a Reforma Agrária tem o objetivo de melhorar a distribuição de renda no campo e as condições de vida da população sem terra? A resposta é sim somente para os ingênuos, aqueles que não conhecem as saúvas ideológicas que habitam o Patropi.

Ocorre que o aparelhamento do Incra pela ideologia petista não entende que a Reforma Agrária tenha uma função econômica cujos resultados devem ser medidos pela iniciativa de seus empreendedores. Nada disso. A Reforma Agrária petista estabelece que a propriedade da terra deve fortalecer a agricultura familiar, um eufemismo para justificar uma situação anacrônica (em termos tecnológicos) em que o agricultor deve plantar um pouquinho de cada coisa para seu sustento. E provavelmente permanecer pobre o suficiente para manter algum tipo de dependência do governo. Se prosperar, vai ser independente, e isso não é bom para o fascismo auriverde. Agricultura familiar pensada como economia de sustento é de uma imbecilidade atroz em termos de leis econômicas. Somente pessoas muito ignorantes podem achar que a auto-suficiência seja exequível na economia do século XXI. A menos que a proposta seja perpetuar a jecolândia.

O resultado é que Valdeci foi desalojado da terra. Perdeu o direito à propriedade. Com um mandado judicial, funcionários do Incra foram até o lote e mandaram que retirassem os bens pessoais e abandonassem a terra. E com ele já sairam mais dez famílias de um total de 151 assentadas. E os expurgos não devem parar por aí. Conta o repórter que a cana é largamente cultivada em 90% dos lotes.

Na verdade, o Incra acusa os assentados de estarem arrendando "suas" propriedades para os usineiros da região, posto que nos limites do assentamento, as plantações de cana-se-açucar se disseminam copiosamente por grandes propriedades. Os agricultores negam. O fato é que repassam a cana para os usineiros e ficam com o dinheiro, o que é absolutamente normal.

A pergunta que se coloca é a seguinte: os assentados (desde 93) não têm direitos adquiridos? Como é que os tais de direitos adquiridos valem para qualquer vira-bosta e não valem para quem está com a propriedade por 17 anos? E por que o Incra precisa ficar patrulhando um assentamento com 17 anos de idade? Será que é preciso da maioridade de 18 anos para que a terra possa adquirir sua plena liberdade como uma propriedade qualquer? Ou será que existem 2 brasis, um de ciclos agrícolas (cana, café, trigo, soja, etc) em que se produziu o sustento da Nação e outro do enxadismo ultimamente levado ao pedestal das iniquidades agrícolas?

Um vizinho de Valdeci, Germano Rodrigues, que também está na lista do despejo do Incra resumiu bem a situação: "Plantei milho, não deu certo, o feijão perdi, o arroz deu prejuízo". Há 22 anos, quando acampou na região, a área já era tomada pela cana. Ao mudar de cultura as coisas melhoraram: "foi com ela que começamos a ver alguma prosperidade. Que mal há nisso? Tínhamos que passar a vida toda num barraco?" Para o Incra aparelhado, a resposta é sim. Devem viver a vida num barraco para servir de massa de manobra das ONGs que enriquecem seus militantes com uma causa que só pode continuar se a pobreza permancer como tal. O novo conceito de assentamento é que são favelões de plástico preto com a finalidade de drenar dinheiro para a causa da Reforma Agrária, que só pode continuar se houver uma grande massa a espera de terra. Aos que progrediram deveriam ter dito que chegou a vez da ciranda. Como Valdeci, o governo petista espera que retorne a condição de sem-terra para poder engrossar o coro dos descontentes. A roda da pobreza precisa girar. Agora é a vez de fazer dos assentados prósperos sem-terras miseráveis outra vez. Sem dúvida a Reforma Agrária é um grande negócio. Melhor negócio até do que plantar cana.


O fator freudiano do subsolo

Existe tanta asnice contida no nacionalismo das riquezas naturais do subsolo, que este site vai desenvolver uma seção sobre petróleo para as gerações terem conhecimento do descalabro em torno do subsolo nacional. Enquanto isso, remeto o leitor ao menu Artigos, a leitura de Maus Presságios para o Présal.

A preservação do meio-ambiente é o assunto preferido dos promotores da devastação ambiental no Brasil. Sim, porque o atual quadro de devastação ambiental não ocorreria se não houvesse este mentalidade pseudo-preservacionista, que na verdade apenas aguarda o aparecimento da submissão privatizadora aos amigos em nome da defesa do bem-comum. Não se impressione. Afirmamos que a degradação ambiental está intimamente relacionada com seus mecanismos institucionais de preservação. Se você acha esta idéia extravagante, não perca por esperar. Enquanto isso leia no menu Artigos, a matéria Os Verdadeiros Poluidores.


E a Alca... hein?

Não conheço nenhum editorial favorável à Alca que não coloque as vantagens comparativas para o desenvolvimento econômico, os prós e contras que devem ser negociados para inserção do país em um ciclo de desenvolvimento que possa duplicar o PIB em uma década. Mas isso não penetra na carapaça da mentalidade regressista, pois para esses, a Alca é uma submissão do Brasil aos interesses do imperialismo. Mas se alguém não conhece a vergonha que é nosso sistema aduaneiro, seja no aspecto burocrático, como no tributário, e ao mesmo tempo, desdenha da importância do comércio para a riqueza das nações, então é porque não depende do mercado para viver, e tem na democracia um mero discurso de fachada, pois não existe nada mais antidemocrático do que as restrições comerciais. Os crescentes superávits obtidos na conta do comércio exterior, com a exportação de commodities nos primeiros anos do novo milênio, representaram uma mudança de paradigma no nosso até então imarcescível déficit comercial. E são uma demonstração evidente de que esse é o caminho. O Brasil exige urgentemente uma segunda "abertura dos portos as nações amigas", passados duzentos anos da chegada de Dom João ao país, e o governo que tiver o privilégio de fazê-la ficará na história com as honras de ter dado a nação o salto que ela precisa para iniciar um ciclo de inserção na nova ordem internacional desenhada pela ascensão asiática.

Em última análise, a oposição ao livre comércio vem da pequenez dos espíritos mesquinhos, dos velhos batráquios do paroquialismo verde-amarelo. Todo mundo sabe que quaisquer medidas que turbinassem o comércio do Brasil com o exterior seriam a princípio progressistas. Os resultados extraordinários do vertiginoso crescimento asiático são resultados dessa equação: a Alca está para o Brasil como o livre comércio para Singapura, Vietnã, Taiwan, Coréia, Japão e China. Será que teremos que viver o atavismo dos 30 anos de defasagem em relação ao mundo para ingressarmos finalmente no livre comércio? Sim, porque no petróleo, que deveríamos iniciar nos anos 20, só começamos nos anos 50, na siderurgia, que deveria iniciar nos anos 10, começamos nos anos 40, na energia eólica a mesma coisa. Em energia solar, ainda não começamos. Já estamos 15 anos defasados (em 2008) dos EUA e Espanha.


Como os ditadores são bons...

A história do sindicalismo brasileiro foi — no início do século — uma história das lutas operárias contra os desmandos do nosso capitalismo selvagem. De perfil majoritariamente anarquista, a luta dos trabalhadores foi uma condição fundamental para o progresso social nas relações de trabalho, no tocante a: segurança no trabalho, higiene e saúde dos trabalhadores, melhores salários, proteção social, direito de greve, e universalização da jornada de trabalho. Estas lutas eram conduzidas por operários nas fábricas, ou então por pequenos comerciantes, como sapateiros, padeiros, etc.

Não era luta para pouco tempo. Conseguir com que algumas reivindicações passassem para a esfera política e dali para a legislação, não era coisa fácil para os líderes da época, especialmente porque o Congresso era dominado pelas oligarquias, as quais pouco se importavam com os problemas da classe operária. Entretanto, por uma imposição gradualista, as coisas iam tomando uma feição mais civilizada até a ditadura getulista do Estado novo, ou até a explosão do populismo fascista, quando então se inicia a era do concessionismo como fator eleitoral.

Todo mundo sabe que os sindicatos, organizações criadas por associação espontânea, tiveram seu turning-point no Estado Novo quando foi por lei instituída a contribuição obrigatória no desconto de um dia por ano do salários dos trabalhadores e a contribuição patronal, — devida por empresas de qualquer porte e proporcional ao nr. de empregados. Desde então os sindicatos se mantém atrelados ao Ministério do Trabalho de onde recebem o repasse das verbas. E empresários também.


Começa a festa

A partir daí cria-se uma oligarquia sindical profissionalizada, separada da produção, completamente alheia ao dia-a-dia operário, que assume o comando sindical do país e se transforma em alavanca política do semicapitalismo brasileiro. Inicia-se o ciclo histórico do escapismo, do coitadismo, do concessionismo e do vitimismo.

A queda da ditadura Vargas não abalou a estrutura sindical. Pelo contrário, em 45 não eram poucas as vozes que pediam processo e condenação dos desmandos do ditador e seus prepostos. Mas a justiça não prosperou porque se haviam ingratos também haviam as curriolas gratificadas pela ditadura, e como um ditador não cái sozinho..., Vargas se recolheu em São Borja para voltar ao poder 5 anos depois apoiado pelos comunistas que havia perseguido e que nem mesmo apanhando, ou talvez por um sadismo intrínseco, viam com os olhos da inversão e com o faro da obtusidade o Pai dos Povos tupiniquins como a figura de ocasião para ampliar sua escalada social, suportados naturalmente pelas oligarquias operárias que haviam encontrado seu lugar ao sol na ascensão social. Como condenar um ditador sem que se condene suas leis e decretos? Vargas volta na avalanche da democracia do pós-guerra sem saber que não seria capaz de suportá-la.

No final dos anos 50, o sindicalismo do imposto obrigatório já era totalmente controlado pelo Ministério do Trabalho. E era uma peça importante na construção do trabalhismo brasileiro (de todas as tendências), contrapondo-se por inteiro ao conservantismo agrário. Mas a questão na fica por aí: como correia de transmissão do sistema político, o sindicalismo se torna a própria essência do populismo brasileiro. Ele se translada para dentro do Estado e se torna parte ativa na preservação do sistema político. Desde então, não há mais lider sindical relevante que não seja político e não há político que enfrente as lideranças sindicais. Volta e meia o edifício sindical treme ante a perspectiva do fim do imposto sindical obrigatório. Mas como o próprio voto, ambos permanecem incólumes em pleno século XXI. Não se sabe até quando. O certo, a única verdadeira certeza que se tem é que a falsificada democracia representativa vigente não vai alterá-lo, e defender isso que aí está como democracia tem sido um dos maiores desatinos dos poucos intelectuais lúcidos desse país.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

6) A Triplicidade Cotidiana

Carlos U Pozzobon

Afinal, existem os 3 sistemas sociais como uma realidade cotidiana brasileira ou tudo isso é apenas um exercício teórico? Se você acha que não, provavelmente reside numa cidade ou região pouco populosa. Considere uma cidade grande brasileira. Ao dirigir um automóvel, você encontra pela rua os catadores, com seus veículos primitivos, os ferros-velhos andantes queimando óleo, as favelas e os muquifos. É o subcapitalismo, estúpido. No meio, a classe média que leva o fardo das incompetências urbanas, e, do outro lado, os que dispõem da mais completa impunidade para transgredir as normas impostas à classe média — são os veículos dos "exceções" à norma e dos chapas-brancas. É o semicapitalismo em sua expressão gloriosa.

O assunto impunidade volta e meia vem à tona detonado por algum caso que ocupa as manchetes dos jornais. A impunidade é apenas o resultado de um sistema construído para abrigá-la, e não uma irregularidade moral, como se quer convencer a população. Ela ocorre porque não existe uma ética para os 3 sistemas: o subcapitalismo, o capitalismo e o semicapitalismo têm sua própria ética. Ética é uma invenção do capitalismo, lapidada pela regulamentação incessante. O mundo feudal também tinha sua ética, baseada na lealdade e na honra. No caso brasileiro, temos como exemplo as condenações impostas pelo Supremo Tribunal Federal a deputados, senadores, ministros e outros, onde correm processos e mais processos e ninguém é condenado. Isso não é por acaso. Essas pessoas estão ali para desfrutar da impunidade e dela se aproveitar. Elas estão sujeitas à outra ética, que não é a ética da modernidade, da justiça cega, porque sabidamente inferior ao sistema criado por e para essas pessoas. E isso é basicamente a dificuldade de modernização do país. As reformas não avançam porque precisam cortar confortáveis privilégios, e assim ficam relegadas às calendas. Como sair do círculo vicioso?


Carlos U Pozzobon

1a farsa: Democracia x Oligarquia

A diferença essencial entre democracia e oligarquia está na relação de autoridade entre os eleitos e o aparelho de Estado. Uma democracia nasce do pressuposto de que o povo elege seus representantes para administrar o Estado, segundo seus programas e incumbências.

Em uma oligarquia, as coisas são um pouco diferentes. Os eleitos não só não podem mexer na estrutura para a qual foram designados, como também possuem prerrogativas especiais para se beneficiar dela própria, caso contrário, não mereceriam esta classificação. Uma oligarquia é por definição uma entidade coletiva criada em torno do ente representado, porém separada do resto da sociedade por normas e regulamentos exclusivos.

Para se constituir uma oligarquia é preciso que um amplo conjunto de leis estabeleça os critérios pelos quais a classe oligárquica se diferencia do resto da sociedade. Se os regulamentos forem iguais para todos, o regime é democrático. Se forem diferentes, é oligárquico.

Estas afirmações servem para que dispensemos recursos retóricos ao denunciar a farsa que nos impuseram com a Constituição de 88. Sob o embalo das eleições diretas, e o elixir da liberdade de organização, criou-se um monstruoso regime. Monstruoso não pelos seus feitos, pois pior do que um regime organizado para quase nada fazer é o grau de adesão capaz de arregimentar seu pretexto de legitimação. E se a sociedade carnavalesca saudou a ditadura militar como o fim de uma era, sem suspeitar que o regime apenas continuava como tal, é porque existe uma monumental quantidade de empregos em que o faz de conta é a ordem do dia. A gente não se ilude se não vive uma atmosfera dissimuladora, que faz com que o Brasil colonial continue a despeito da extraordinária patetice intelectual de seus mais nobres representantes.

A cultura oligárquica não é privilégio só do governo: em todas as formas de organização social encontramos o mesmo espírito de patota, de descaso para com o público representado, de completa indiferença quanto à obrigação de transparência e com inclinação patológica para a manipulação e o grupismo.

A verdadeira administração pública é aquela embasada no tom fornecido pelos dirigentes eleitos. E por isso não adianta ficarmos falando no descalabro da burocracia, se esta jamais será contida enquanto os próprios burocratas não estiverem acossados pela possibilidade de demissão. Uma nova ordem social, que libere as energias criativas do empreendedorismo não é compatível com a ordem burocrática cadastrativa e castradora atual porque seus agentes estão encastelados por cima do poder do voto. Eleger representantes para dispensar os entulhos vitalícios é a medida mais elementar da democracia. Sem este poder, todo o aparato eleitoral é mero ornamento a serviço do estatismo.

Já se escreveram milhares de páginas sobre isso e parece que nada ainda foi dito. Insistimos neste ponto: o melhor serviço público é aquele em que o agente executor não tem muita certeza sobre o seu destino, isto é, ele está numa situação de ser intercambiável com a sociedade. Aí, e somente aí, quando sociedade e Estado forem intercambiáveis é que teremos a eficiência do serviço público.

Naturalmente não é isso que se propaga aos quatro ventos no Brasil. Por aqui, o argumento basilar é: nossos políticos são uns crápulas. Se o Estado ficar sob a mão deles, o país se dissolve. Eles acabam com a Nação. Eles liquidam com a ordem social. Eles arrebentam com os poderes republicanos. Estas baboseiras não partem do princípio de que nossos políticos são calhordas exatamente porque não têm o poder de demitir os intocáveis (como pessoas físicas), mas o de exercer o mandonismo total sobre os recursos da instituição. Todo mundo sabe que qualquer político honesto — os poucos que existem — fica basbaque com os métodos e procedimentos dos carrapatos orçamentívoros que sugam os recursos públicos à exaustão. Com isso, aderem ao faz que não vê, ao deixar a coisa correr solta.

Por acaso a oligarquia são os ricos? Por acaso os oligarcas são milionários enfatuados e cínicos? Uma oligarquia é um conjunto de pessoas que sabe que a ascensão social está na esperteza dos cartórios e não no esforço individual. Eis aí a natureza da crise ética do Brasil. São oligarcas os sindicalistas que saem dos tornos mecânicos para a política, os portuários que saem do nada para os superssalários das brechas da legislação, os práticos das beiras de cais, os beneficiários dos seguros obrigatórios, os despachantes da política, os petroleiros que ganham adicional de insalubridade sem nunca sair do ar condicionado dos escritórios, a gama imensa de pessoas simples catapultadas para a fortuna dos cartórios.

Uma oligarquia é pois um poder permanente que é compartilhado por todo aquele que atinge a conquista do cargo, e para o qual seu primeiro dever é respeitar os privilégios dos outros que lhe são afins. A oligarquia é este ser coletivo, esta máquina burocrática que se coloca acima do resto da sociedade e para a qual tem seus próprios pesos e medidas. E que se encarrega de julgar a si própria, de empregar os parentes, de reivindicar independência financeira, de determinar as próprias mordomias e benesses insufladas pelo ego coletivo da auto-importância. Logo, a impunidade que nos grassa moral e fisicamente é apenas requisito de uma classe que não pode ser mexida, que não pode ser dispensada e sobre a qual a política fala de suas consequências como se a causa maior, a estabilidade e vitaliciedade no emprego sequer existissem. Ora, isso não é elite !

Associar oligarquia com elites é uma das nossas tragédias de infantilismo intelectual. A conquista de um superssalário, o pulo da fábrica para o sindicato e dali para o Congresso, a ascensão do chinelão para a câmara de vereadores, do portuário em empregador de mão-de-obra, do despachante em deputado, do funcionário com 2, 3, 4, 5 contracheques mensais, comprova que a oligarquia é uma classe que vive do sistema de distribuição de monopólios pelo Estado. Eis porque não se combatem os monopólios no Brasil ! Não se combatem porque a essência do nosso sistema é um Estado parasitário comandando uma enorme economia de monopólios consentidos. A isto chamamos semicapitalismo, uma incoerência com a democracia e com o capitalismo que só consegue ser equilibrada à custa da grande aliança mistificatória mantida pela Frente Única das mais antagônicas ideologias políticas no mundo ocidental — mas que no Brasil termina sempre no mesmo tom. A direita e a esquerda em aliança ao sabor da conjuntura do deixa como está para ver como é que fica.


2a Farsa: Direita x Esquerda

Uma das categorias superadas do pensamento político nacional insiste em sobreviver nos blogs de jornalismo e nas discussões acadêmicas — a de esquerda e direita. Na década de 80, este pensamento foi contestado pela nova geração de intelectuais, como um acerto de contas com os acontecimentos relativos ao 68 francês. A questão que se coloca não mais se situa no elenco de políticas conservadoras ou revolucionárias, mas de relativismo político que também se situa nos jargões habituais de socialismo e democracia.

Como o socialismo foi por muitos anos associado aos modelos soviético e cubano, as pessoas fugiram do socialismo como o diabo da cruz, pois as implicações de liberdade individual são mais severas do que de sistema político.

No Brasil, a formação política básica da geração de 68 era a de oposição à ditadura. A ditadura era entendida como um governo de direita, que se baseava em um sistema eleitoral fortalecido pelo populismo político, o assistencialismo econômico e a expansão do Estado pelos empreendimentos empresariais públicos.

Isso por si só já criava um relativismo político. A esquerda tradicional defendia a estatização furiosa, mas não o clientelismo. Hoje em dia assumiu todos os vícios da ditadura, e ainda piorou alguns deles.

O aspecto mais importante do discurso da chamada “esquerda” era sua oposição ao capitalismo, embora não se soubesse bem o que isto significava para a esquerda. Em termos gerais, eram a propriedade privada e as empresas particulares. Mas, analisando mais detidamente, eram propostas de estatização total da economia, portanto, um modelo já conhecido de socialismo insano. Para outros, entretanto, a questão era diferente — a esquerda era a ampliação da democracia, saindo do formalismo (adjetivado como “burguês”) para situar-se dentro de uma dinâmica de maior participação popular. Mas isto também continha um retrocesso político, pois a tal de participação se limitava a discursos populistas e práticas clientelistas, um recurso usado pelo velho conservadorismo nacional.

A noção de que a sociedade era basicamente atrasada, e que necessitava de transformações, era consenso nos anos 60. As propostas desse progresso, entretanto, nunca foram muito claras. As pessoas que tiveram uma educação tecnológica sabiam que o lado mais dinâmico das transformações estava no progresso tecnológico, embora opiniões contrárias advertissem para os cuidados com tais posições, pois que o progresso técnico não levava necessariamente ao progresso humano, e isso se revelou totalmente equivocado. Até agora não se sabe de progresso que tenha desviado a humanidade como um todo para trás. Tenho consciência de que acidentes tecnológicos, principalmente na área nuclear, devastação produzida por armas sofisticadas nos conflitos mundiais, do inaceitável extermínio de populações em uma época em que as informações correm soltas pelo mundo, são mais uma tragédia política, isto é, decorrentes mais da falta de progresso político que do avanço tecnológico em si. Ademais, o fim da guerra fria já serviu de alívio para a principal tensão mundial — o extermínio nuclear.


Exploração x Cooperação

A diluição dos conceitos de esquerda e direita guarda uma relação com a globalização, as tecnologias de Internet, as conquistas da medicina e biologia, a revolução nas técnicas de cultivo, os novos fármacos, o avanço na utilização de energias alternativas, principalmente as renováveis como energia solar, eólica, biocombustíveis, e com o consenso em torno da preservação ambiental.

O sonho original de uma sociedade sem classes, patrimônio dos socialistas, não se concretizou nos estreitos limites do estatismo, mas na sociedade high-tec que fez mais pelo desenvolvimento de novas formas de trabalhos colaborativos e voluntários do que centenas de obras de pensadores e filósofos de esquerda.

A democracia, como sistema de valores, mais do que como forma de governo, ainda se encontra em fase embrionária nos países emergentes. Este site tem procurado demonstrar que democracia é outra coisa do que se fala por aí. De fato, a primeira constatação é que somos um sistema de origem monárquica materializado na cultura estatal, e com necessidade de seguir a democracia como obrigação dissimuladora de inserção na totalidade mundial, e não como essência igualitária em direitos, princípios sociais e educação.

A defasagem fica por conta da necessidade de mascarar esta diferença essencial com a roupagem das ideologias de todas as formas e construções mentais. Tanto o liberalismo como o socialismo brasileiro contêm os elementos dessa terrível mistificação, e nunca se sabe quando vamos sair desse beco sem saída. Enquanto isso não acontecer, a luta política entre esquerda e direita vai ser apenas um teatro cujo resultado será sempre a ocupação do aparelho de Estado para perpetuação das mesmas práticas atrasadas.

Portanto, se o relativismo é a essência da política, no Brasil nunca conheci um esquerdista que subscrevesse as recomendações de Marx e Lenin pelo fim do Estado, a menos dos lugares comuns da hipocrisia proselitista. Isso acontece porque no Estado brasileiro está a acomodação paradisíaca para os mais diferentes padrões humanos de detestável procedência feudal — o parasitismo, a incompetência, o protecionismo, o pilatismo e a acomodação.

No terceiro mundo, existem casos psicológicos típicos de comportamento ideológico. Se você é uma pessoa sem autoconfiança, com tendências à preguiça congênita, então é muito provável que vá defender uma certa linha do esquerdismo que se resolve no estatismo. Ali vai encontrar abrigo e proteção. Entretanto, se você é um liberal burocrata, com ambições econômicas, então o estatismo é seu caminho natural, pois é onde vai encontrar as oportunidades mais fáceis, o protecionismo econômico, os empréstimos fáceis, a honorabilidade institucional, isto é, o verdadeiro mercado brasileiro. Em consequência, pode-se dizer que — no Brasil — todos os caminhos levam a Roma, e o debate entre esquerda e direita não passa de mera diferença doutrinária, sem nada que comprometa o status quo do sistema. Nada mais semelhante ao regime militar do que o governo atual: corrupção deslavada, proteção a fraudadores, empreguismo descarado, assistencialismo eleitoreiro, falta de escrúpulos político, patrimonialismo sem limites, fraudes contra o próprio Estado que lhe serve de suporte, negociatas com o interesse público, a cara-de-pau, o mandonismo, o constrangimento articulado para silenciar adversários, e por aí afora. A única revolução que existe no horizonte é o desmonte do Estado patrimonialista, e ela só pode ser implantada com a passagem para o capitalismo avançado. Mas não é isso que quer a metade do PIB do país.


Monopolistas x Competidores

Mas a grande diferença do pensamento político nacional, se penetrarmos abaixo da crosta superficial dos lugares-comuns, não está entre esquerda x direita, mas entre monopolistas e competidores. Pessoas da chamada "esquerda" normalmente acham a competição sem qualquer importância, tanto é que defendem monopólios estatais como representantes da nacionalidade brasileira. À "direita", também encontramos o mesmo sentimento — nos tempos da Varig, a propaganda tinha o refrão "Varig, a nossa Varig". Os militares foram os campeões da estatização e, curiosamente, hoje são invejados pelos esquerdistas no governo, que tudo fazem para ampliá-la.

A reação (eis aí os reacionários) resultante de qualquer proposta de privatização no Brasil tem suas causas no mito do Estado como representante da nacionalidade, e no fato de que estatais são instrumentos para os partidos políticos empregar um grande contingente de cabos eleitorais (que, como seus chefes, circundam a política por falta de competência para o mundo privado). Sem esta enorme máquina, não há empregos para amigos, parentes e correligionários.

Qual a diferença entre duas posições políticas se, ao se alternarem no poder, ambas mantêm a mesma estrutura burocrática estatal e nenhuma delas aponta para uma ruptura com o status quo vigente? É que uma ou outra se apoia em uma mise-en-scene de lugares comuns que lhe dão um tom de esquerda ou de direita, mas que, na prática, não têm nada de antagonismos, pois o que existe não é esquerda nem direita, mas um sistema que se pretende manter e ampliar. Naturalmente, há controvérsias, e bem que podemos atribuir a ambas um formidável estoque de obscurantismo.

Outra diferença está entre progressistas e regressistas. Nos anos 60/70 era costume classificar as pessoas entre progressistas e reacionárias. Naturalmente, os auto-intitulados progressistas é que chamavam os oponentes de reacionários, embora estes nunca se considerassem como tal. Mais tarde, descobriu-se que os então progressistas eram na verdade retrógrados, e esta inversão não custou barato para a vida política nacional.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

5) Capitalismo Avançado

Carlos U Pozzobon

A essência do capitalismo avançado é a competição entre empresas e pessoas. Entre empresas, pelo papel do Estado na luta contra monopólios, através da regulamentação legislativa exercida por agências. Entre pessoas, pela preparação ao individualismo e educação para o contínuo aperfeiçoamento. No Brasil, o capitalismo avançado é uma vela bruxuleando ao vento, pois não compartilha seu modelo com outros sistemas sociais. O capitalismo ou lidera a sociedade ou a sociedade não é capitalista. O desarranjo entre uma parcela da sociedade brasileira vivendo formas de capitalismo avançado, e o restante completamente alheio às demandas desse mesmo capitalismo, cria uma cultura pitoresca, que mais confunde do que esclarece. Pode-se notar isso nos escritos sobre o Brasil por brasileiros e estrangeiros: os brasileiros não abordam o Brasil como uma sociedade com três sistemas; os estrangeiros também não, pela completa ignorância sobre as origens dos nossos problemas. Além do mais, três sociedades diferentes significam, no mínimo, três éticas atuando no mesmo espaço social, o que pode parecer um contrassenso, mas é a realidade nua e crua.


Elixir dos Deuses

O capitalismo avançado não se caracteriza por um setor financeiro globalizante, nem por prédios suntuosos, muito menos pelo comércio capilarizado na sociedade. O que de fato o caracteriza é sua vanguarda tecnológica. O resto corre atrás. Ciência e tecnologia, por sua vez, não são acidentes de percurso, ao contrário, são a própria essência do sistema, a ambrosia divina. O capitalismo avançado é um sistema de autoridade e representação capaz de negar o modelo do Estado semicapitalista, que, paradoxalmente, apenas sobra como oferta de recompensa o preparo individual para inserção no modelo de inovação permanente.

Pode-se repousar no capitalismo e ficar na mesma atividade para sempre. Mas esta não é a cartilha básica. Ao estagnado não sobram os louros da vitória. Toda a prática acumulada tem seus mecanismos de valorização indutivos. O verdadeiro valor está na capacidade de "enhancement" — espécie de melhorismo pregado por Voltaire já no século XVIII como forma de a sociedade superar seus problemas, e que somente 200 anos depois é que se tornou um modus vivendi. No capitalismo avançado, a vida intelectual — cujo epicentro é a própria reprodução de objetos culturais — adquire alta estima e valorização. O conhecimento e a experiência adquirem notoriedade e se tornam elementos valorativos. A demanda por conhecimento é o maior estímulo e garantia de sobrevivência. Como conhecimento não se adquire por indicação, não se consegue com fraudes, não se assimila com falsificações, e não se concretiza com dissimulações, o capitalismo avançado olha para baixo e não consegue entender a enfatuação caipiresca e aspônica do semicapitalismo brasileiro.

"Acedi em voltar ao Brasil, apesar de convencido de que não estávamos ainda preparados para compreender e, muito menos, possuir e incrementar essa coisa séria, que é um Instituto Científico. Depois de haver organizado e dirigido um estabelecimento dessa ordem nos Estados Unidos e de ter conhecido os meios técnicos e universitários norte-americanos e europeus, convenci-me de que a burocracia, que precocemente invadira até as instituições científicas em nossa terra, convertendo-se em madrasta dos nossos poucos devotados pesquisadores, representa realmente uma prova de decadência, agravada pela lei do menor esforço. Burocracia é o reumatismo da administração; entrava-lhe os movimentos. E instituto científico como movimentos entravados é apenas um contra-senso". AMARAL, Afrânio. Serpentes em Crise: Revista dos Tribunais, 1941, p. 168.

A relação entre tecnologia e sociedade é a de uma parceria que se mantém enquanto a tecnologia for capaz de representar melhoria na satisfação de algum aspecto das necessidades humanas. Mas a questão não se resume a isso — a crítica da tecnologia é também um aspecto importante dela mesma, pois é um elemento essencial na reprodução e inovação tecnológica, na medida em que não só permite superar obstáculos e deficiências, como também ampliar limites para além dos horizontes do cotidiano.

Existe um fator de excitação e entusiasmo por trás de cada etapa do desenvolvimento tecnológico que envolve cumplicidades e otimismo entre interlocutores. Esta atitude de risco e entusiasmo, esta postura anti-nihilista, talvez sejam a diferença essencial entre a inserção ou exclusão das pessoas no mundo tecnológico.

Na medida em que a tecnologia se apoia na coexistência pacífica entre concorrentes atuantes em nível global, ela obriga a formação de círculos participativos e fóruns de implementações que garantem a convivência e a aceitação da concorrência como um fator natural ao seu próprio meio. Daí porque sua verdadeira vocação é a tolerância. De um lado, a tecnologia luta desesperadamente pela preferência do consumidor; de outro, ela é beneficiária do ambiente criado pelas iniciativas coletivas no meio da indústria. Por melhores que sejam os especialistas, por mais notável que seja um laboratório, não existe nenhuma parte que seja maior que o todo. Em decorrência, os grandes se sentem apenas uma parte do todo, em vez de senhores do Universo.

Gradualismo

O movimento mais importante no avanço tecnológico é o gradualismo. Embora novas descobertas sejam sempre capazes de mudar os caminhos, a evolução gradualista significa, paradoxalmente, o maior impulso ao sistema como um todo, embora não seja em si mesma uma revolução, já que não traz novos paradigmas embutidos, mas apenas melhorias que, de repente, mudam todo o ambiente de produção e/ou consumo de um determinado objeto.

Além disso, deve-se levar em conta que a tecnologia é um fator de interdependência. O avanço em um campo, como o de fibras ópticas, pode representar melhor resultado na agricultura. Isso não é um disparate, e pode ser explicado com o seguinte raciocínio: a interdependência do conhecimento significa que quanto maior o engajamento tecnológico, mais proveito uma área tira da outra. Daí que o avanço em telecom tem reflexos na agricultura que esteja dinamicamente engajada no mercado.

No domínio tecnológico, o gradualismo produz resultados aceleradores quando é entendido como pequenos passos dados por muitos campos diferentes do saber em um movimento contínuo e progressivo. A melhor metáfora para isso é a de pessoas arrastando um barco com uma corda. Quanto mais pessoas puxarem a corda, melhor é o resultado do deslocamento. Por isso, o gradualismo de mil campos diferentes do saber, significa, de alguma forma, um grande passo em alguma direção à vida produtiva na sociedade. Isso quer dizer que quanto mais pessoas estiverem envolvidas na pesquisa tecnológica, mais conhecimento e inovação a humanidade terá como um todo, sem perspectiva de limites.

Ciência no Brasil

Embora o Brasil esteja engajado em diversas áreas da produção científica internacional, sua participação deixa muito a desejar exatamente por causa da burocracia infernal que medeia os órgãos de pesquisa científica e o governo. Para comprovar nossas deficiências, normalmente utilizamos uma comparação quantitativa com o número de patentes geradas em outros países. Os dados são avassaladores. Representamos menos de 1% do número de patentes geradas internacionalmente. Por que razão o Brasil não consegue se engajar mais profundamente no processo de criação científica? A resposta a esta questão não é simples e não pode ser dita em um único parágrafo.

A princípio, podemos afirmar com unanimidade o fato de que o engajamento científico é gerador de riquezas e de que as sociedades mais engajadas são as que obtêm um nível mais elevado de bem-estar e renda. Portanto, parece óbvio que, por si só, o engajamento científico deveria ser uma prioridade política dos povos em todo o mundo. Entretanto, tal não acontece. Algumas (muitas) coisas concorrem para que a ciência seja deixada em segundo plano, mas o ponto central é o seguinte: enquanto houver formas de ganhar dinheiro baseadas em negociatas, em arranjos nos corredores do Congresso, nas Assembleias e Prefeituras, sem falar nos incontáveis órgãos públicos, evidentemente que a questão tecnológica sempre será secundária para as pessoas que circulam nesses ambientes. Esforços no sentido de preparação profissional não são suficientes. O simples fato do Brasil mandar estudantes para universidades americanas também não basta, pois a realidade estatística mostra que o nr. de bolsas para ciências políticas, sociologia e quetais tem aumentado em detrimento de bolsas para ciências tecnológicas.

O Nó de P&D

Os dados relativos ao desenvolvimento da pesquisa científica são reveladores quando comparamos o Brasil com a Coréia do Sul. Em 1980 o Brasil gerou 1,9 mil trabalhos científicos em publicações especializadas, enquanto os coreanos apenas 230. No mesmo ano, o Brasil registrou 23 patentes nos EUA, enquanto os coreanos apenas 13. Em 2000, a produção científica brasileira cresceu para 9,5 mil publicações, mas a coreana já estava em 12,2 mil. Essa correlação de patentes já mostra que tem algo de podre no reino da Dinamarca: as patentes brasileiras registradas nos EUA ficaram em 98, contra 3300 da Coréia do Sul !

O que está acontecendo? Um pesquisador do Instituto Butantã nos oferece a resposta na bandeja: “é irreal fazer inovação no Brasil” Entrevista com Antonio Carlos Martins de Camargo, OESP 29/3/2009, p. A30.. Demissionário do cargo que ocupava como diretor de um Centro de Pesquisas, foi categórico: “a legislação não dá as garantias necessárias para os investimentos em milhões de dólares que precisam ser feitos. Isso é ruim para o país, porque sem investimento industrial não há inovação e para que haja investimento a propriedade intelectual de uma patente precisa estar muito bem amparada legalmente”. A questão é que as patentes, por uma nova lei aprovada em 2004, eram divididas entre o inventor, o investidor e o instituto empregador e não mais entre a FAPESP. Na prática, as patentes passaram a ser controladas pela Assembleia Legislativa e pelo Governador, que deve dar o aval a cada novo pedido de licenciamento. E como colocar a ciência nas mãos de políticos é tão perigoso quanto nas mãos dos aiatolás, evidentemente que nenhum investidor privado vai arriscar seu capital com essa gente.

O resultado é que a pesquisa definha, e com ela a relevância do país no desenvolvimento científico. E que problemas decorrem disso? Os mesmos de sempre: a incapacidade de o país se livrar da burocracia atravancadora e paralisante de toda e qualquer iniciativa. Este capitalismo cadastral é a pior espécie de regime: regulamenta o que deve ser dispensado, cria exigências descabidas que não têm relação com o objeto de interesse, confere poderes a burocratas carimbadores de baixo nível, quando não elege parasitas ignorantes das questões em pauta para legitimar os direitos alheios. Ou seja, o problema sistêmico confere os louros da vitória àqueles cujas práticas e mentalidades estão fora dos critérios de mérito da sociedade tecnológica.

FIM

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

4) Subcapitalismo Brasileiro

Carlos U Pozzobon

É uma das invenções mais bem instrumentalizadas da sociedade brasileira. Convenhamos, não é fácil manter um sistema estável em que parte da população é jogada em uma pobreza, que dali não sai facilmente, e ainda é capaz de criar uma enorme quantidade de movimentos sociais extraordinariamente especializados na manutenção e expansão dessa mesma pobreza. Como negar a constatação óbvia de que os representantes dessa classe são quase sempre seus agentes mantenedores?

Herdeira do escravismo, a condição fundamental do subcapitalismo é a impossibilidade de acumular poupança. É toda uma cultura alicerçada em um amplo espectro de justificativas para permanecer como tal. A mais notável é de que os salários não podem subir porque arrebentariam os cofres do Estado, especificamente o da Previdência Social. Assim, criamos uma situação garantidora de que sempre teremos mão-de-obra barata para suprir as necessidades da classe média. No subcapitalismo, não há acumulação de capital suficiente para a prosperidade individual ou familiar. Ganha-se pouco e não há segurança para prosperar. Os ganhos são comprometidos com as necessidades básicas, e o pouco poupado é freqüentemente perdido com a falta de segurança ou com a precariedade da infraestrutura e da vida. No vale-tudo pela sobrevivência, o subcapitalismo tem suas próprias características:

1. não está sujeito às mesmas regras do resto da sociedade. Tolera-se a invasão de propriedades (sob o argumento da falta de moradia ou terra), tolera-se o furto de energia elétrica ou água (sob o argumento de que são necessidades básicas), toleram-se flanelinhas (sob o argumento do desemprego), toleram-se ambulantes atravancando a via pública (sob o mesmo argumento), toleram-se catadores de papel sem qualquer obrigação com as normas do trânsito (por algum argumento inválido para o resto dos motoristas), tolera-se a enxurrada de pedintes em semáforos, etc. Ou seja, as relações de propriedade e legalidade são escassas ou fragilmente implementadas, sujeitas a transgressões de toda ordem.

2. Parte da população vive com salários bem abaixo da dignidade humana, cujo valor de referência é o salário mínimo. Nos últimos 30 anos, os discursos políticos de todos os partidos têm condenado sistematicamente a erosão do salário mínimo. Ao assumir o poder, eles mudam o discurso e o salário permanece imexível. Trata-se, portanto, de um invariante importante na composição do subcapitalismo. Em ciência, sempre que encontramos um invariante dizemos estar na presença de uma lei. A manutenção do salário mínimo irrisório é uma forma sofisticada de manter a pobreza, pois ela é necessária a outro sistema social, também herdeiro do escravismo, mas agora na condição de corte.


Degradação e Desperdício

3. Forma imposta pela sociedade, a degradação tem como fator de equilíbrio a depredação. Para alguém que tenha sofrido uma degradação material ou moral, a depredação é uma atitude psicológica compensadora. O sujeito que leva por nada um cacetaço da polícia, em alguma barreira, vai compensar a humilhação quebrando alguma coisa no espaço público. Ponto final. Degradação e depredação vão de mãos dadas no regime onde impera o ressentimento.

O espírito depredatório é consequência importante da exclusão social. No Brasil é muito confundido com falta de educação. Ledo engano. A depredação está no subconsciente de uma sociedade fragmentada em regras diferentes e, sobretudo, na total insensibilidade para com os valores humanos. A depredação é a reação primária ao modelo de Estado, como veremos adiante. A depredação representa para o inconsciente a compensação por uma ausência. Pela depredação, o indivíduo humilhado conquista satisfação psicológica ao confrontar diretamente o Estado, os poderosos, ou o que ele entende por sistema.

4. O desperdício tem relação com a carência. Parece que pessoas carentes têm uma predileção especial pelo desperdício. Seria uma compensação pela impossibilidade de fazer poupança? Ou um atavismo da brasilidade para a nossa arquetipia de superabundância? O desperdício é o ponto de encontro entre dois subssistemas: de um lado, o semicapitalismo, e de outro o subcapitalismo. Um pela natureza do processo de liderança, outro como irridência e/ou insubordinação contra toda a ordem racionalizante da organização do trabalho e da vida.

O desperdício é um lado chocante no subcapitalismo. A velha geração de imigrantes europeus de meados do século XX via nos pobres brasileiros pessoas que possuíam 2 vícios essenciais: a vagabundagem e o desprezo para com a poupança. Era uma geração cujos ideais de progresso estavam diretamente relacionados ao ascetismo e à usteridade no trabalho, o que lhe conferia os requisitos mínimos para a prosperidade. E iniciaram a vida tão pobres quanto os jecas nativos. Mas mudaram, pouparam, souberam acumular e souberam transmitir valores à prole.

A matação

A cadeia de elementos pré-modernos tem na inexistência jurídica de ação prática a dispensa das relações contratuais mais simples, e introduz um elemento desprofissionalizado, equilibrista e improvisador — agente de conhecida rubrica para a ineficiência dos serviços: a matação. O biscateiro representa o arlequim dos serviços de utilidade doméstica. Trânsfugo da profissionalização, dos baixos salários, conhecedor a meias, o biscateiro dos dias atuais está para as práticas tecnológicas como os camponeses de Molière para a complexidade da vida urbana. Vai trocando os pés pelas mãos. Ele faz parte da cadeia de produção de uma indústria de qualidade duvidosa em que circulam livremente produtos de baixa qualidade, que também contribuem para tornar penosa sua atividade. A matação começa no processo de diagnóstico e termina na qualidade do serviço. O biscateiro é um improvisador e faz parte de uma sociedade com um Estado entrópico de desordem. Ele é, sobretudo, um subproduto da crise de autoridade, e só existe porque entre ele e seu público não há a intermediação da Justiça. Ninguém vai recorrer à Justiça por causa de um encanador, eletricista, azulejista, fretista e o diabo a quatro. Daí que temos que assumir uma condição de negociadores, de criadores de laços interpessoais porque enexiste a mediação da autoridade do Estado.

Ideologias de Suporte

A ideologia do coitadismo aparece como um sintoma da decadência cristã e se transforma em combustível político que vai dar musculatura ao sindicalismo brasileiro já nos anos 30, mas com resultados verdadeiramente impressionantes na primeira metade da década de 60. (Ver 'Sindicalismo' - na seção Regressismo - para obter um panorama geral sobre o assunto) O coitadismo é impulsionado pela comiseração e piedade emocionalmente criadas pela pobreza que não se restringe à situação material, mas às condições de vida, higiene e habitação de parcela considerável da população brasileira que — abandonada à própria sorte — se reproduz exponencialmente. A sociedade mantém com essa parcela da população uma relação bifronte: de um lado, a compaixão pelo destino desventuroso dos pobres; de outro lado, a total indiferença pela vida, e até um certo sadismo quando usa a violência e a eliminação física como instrumento policial de justiçamento.

De fato, o caráter bifronte é a essência do brasileiro, justamente porque dividido em sistemas sociais diferentes — julga os fatos de acordo com o sistema ao qual está inserido. Se vemos um criminoso saído das fileiras do judiciário, achamos no máximo que ele deveria perder o cargo e a função, por razões de honorabilidade da instituição. Se vemos um criminoso saído das favelas, achamos natural que seja abatido a tiros pela polícia.

O subcapitalismo tem suas épocas de grande relativismo. No momento, existe toda uma sociedade estruturada de forma a consolidar o subcapitalismo como sistema, baseada em algumas premissas que ela deve tolerar:
1. A dispensa do cumprimento da lei. Isso vale para os catadores de papel, que não precisam se preocupar com o tráfego nas ruas (pois são inatingíveis), até aqueles dispensados de pagamento de energia elétrica, pelos gatos nas redes. E, naturalmente, pelos esbravejadores que acham que a pobreza é suficiente para cometer toda a sorte de delitos contra a propriedade privada (dos outros).
2. Ser pobre e ser feliz. A ideologia de conservação do subcapitalismo hoje em dia não é mais um modelo de Estado em que o descaso com saneamento, habitação e saúde foi a causa básica dos cancros sociais urbanos. Atualmente, a ideologia de conservação da pobreza foi ampliada para ideias como a da agricultura familiar, reforma agrária, cultivo orgânico e quetais.

subcapitalismo 5Se o semicapitalismo brasileiro é um regime de privilégios, o subcapitalismo também o é à sua maneira, ao tratar de obter as suas migalhas a qualquer custo. O ideal do pobre está no privilégio do rico, e não no regime de competição do capitalismo avançado. Já se falou demais na observação de Joãzinho Trinta sobre o desejo de luxo e riqueza dos pobres, tão bem expresso em nosso Carnaval. Pela análise sistêmica, isso é óbvio ululante. Como se pode pretender que um estropiado seja algum dia um dirigente de empresa? Como se pode admitir que um joão-ninguém algum dia chegue a alguma relevância profissional? O que os pobres querem e invejam são as mordomias, a opulência de fachada, o papel molieresco do burguês ridículo tão bem apessoado na figura de certo Presidente da República.


Dois pesos e duas medidas

É fato corrente que, na sociedade brasileira, aquelas mesmas pessoas que falam em "dar um mínimo de cidadania aos excluídos" são as mesmas que acham natural que esta cidadania seja demonstrada quebrando empresas agropecuárias, matando gado em fazendas, cortando plantações experimentais, fechando estradas, e espumando de raiva contra a sociedade que cresce e se diversifica turbinada pela pesquisa científica, pelo crescimento econômico mundial, pela possibilidade de multiplicação de riqueza e inserção progressiva de populações marginalizadas nas oportunidades de consumo, pela primeira vez na história da América Latina.

Como dois sistemas sociais entram em choque? Como se avalia na vida cotidiana a narrativa da luta entre sistemas sociais diferentes? Bem, a crônica dos fatos corriqueiros é praticamente infinita. Para exemplificar, conto uma estória testemunhada com "estes olhos que a terra há de comer". Considere a construção civil na Europa, EUA e São Paulo. Quando se frequenta um prédio em obras, de condomínios classe A, ou de hoteis e flats 4 ou 5 estrelas, na fase construtiva diversas subcontratadas concorrem na obra.

Nos anos 80, houve o caso de um famoso flat em SP que ia buscar mão-de-obra no nordeste e abrigava os operários em pardieiros de madeira compensada no primeiro subsolo. Ao lado, havia um grande corredor e logo um tapume que internamente constituía a sala de comando da construtora para um ou dois engenheiros e quatro ou cinco assistentes, e por onde circulavam diariamente dezenas de pessoas no azáfama da construção.

Toda a noite, os tapumes eram regados pela urina dos operários que, não obstante terem à disposição instalações sanitárias, ainda assim brindavam os não poucos transeuntes com a fedentina asfixiante naquele subsolo lúgubre por uma provável indetível satisfação de seus recalques de inferioridade social. Nas salas onde se concentravam alguns trabalhos de curta duração, mas de grande mobilidade, como salas de telefonia para onde convergiam todos os cabos, não era incomum que ao chegarem pela manhã empregados subcontratados encontrassem o espetáculo de um escroto cuidadosamente defecado como presente do deboche dos ressentidos aos demais.

Nos andares, os fios de telefonia às vezes produziam a surpresa de desaparecerem misteriosamente, ou então de serem arrancados dos dutos, cortados e reinseridos somente uma pontinha, para dar a impressão de que estavam ali tal como foram deixados.

O cronograma da obra não tinha que lidar apenas com a complexidade do conhecimento científico esboçado em organização e métodos. No meu Brasil brasileiro, havia a entropia de lidar também com o fenômeno de escalonamento social de forma séria: não era possível permitir a entrada de empresas de acabamento em um ambiente que ainda estava em fase de construção e, portanto, com arigós em plena atividade. Somente quando a estrutura edificante estivesse pronta e os residentes afastados é que podiam chegar os representantes das inúmeras empresas de mão-de-obra qualificada.

Durante meses, engenheiros, arquitetos, instaladores, projetistas, empresários participantes de tomadas de preço, etc, tinham que circular pela sala de operações e sentir o perfume da guerra social não declarada, não travada com armas, mas com arsenais de excreções humanas em uma situação que diariamente era afrontada com o mesmo diagnóstico: "não tem solução".

Por trás da aparente normalidade, havia um choque de civilizações.

FIM

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

3) Mentalidade Estatista

Carlos U Pozzobon

A mentalidade semicapitalista é totalmente diferente do mundo capitalista porque ela sempre conleva o descaso com a produção e o progresso material. Às vezes essa indiferença torna-se até mesmo oposição visceral a tudo o que signifique progresso. Para intelectuais dessa espécie verde-amarela, a noção de progresso é substituida pelo sentimento de conservação de riquezas naturais.

Enquanto para o capitalismo avançado a exploração dos recursos está interrelacionada com a riqueza social como um todo, para a mentalidade verde-amarela ela é uma atividade moralmente inaceitável. Considere, por exemplo, um dos mais prestigiados acadêmicos uspianos, o geógrafo Aziz Ab'Saber. Para ele, a privatização da Vale do Rio Doce foi um crime cometido contra o país porque "na Amazônia, há o último grande distrito mineral descoberto no século 20, com ferro em quantidade, um pouco de ouro, prata, nióbio e urânio. Agora com as imagens de satélite, sabemos que não há possibilidade de achar outro igual. Privatizar e perder o potencial econômico disso foi muito ruim... Quando estive na França, algumas pessoas correram para mim e disseram: 'professor, diga aos seus colegas que é muito triste saber que o minério de Carajás, comprado a preços aviltantes, serviu para fazer o túnel do Canal da Mancha' " (OESP, 19/12/2004, p.J-3).

Este raciocínio, uma das pérolas do nosso atraso, diz tudo: o minério de ferro não é vendido pelo seu valor de mercado, mas a um valor insignificante, e quando não explorado é melhor do que explorado, pois representa uma reserva para o futuro. A mentalidade de reserva para o futuro é essencialmente brasileira (e de povos subdesenvolvidos), o que enlouquecia Monteiro Lobato nos anos 30 — que arrancava os cabelos com a lentidão do Brasil para se flagrar de que o desenvolvimento econômico tinha que ser imediato.

O país do futuro que guarda suas riquezas para o futuro

Imagine se, por alguma razão, os ingleses se arrependessem de ter vendido seus parcos minerais para a construção da Estação da Luz (SP), ou se os os belgas tivessem derramado lágrimas por ter transformado o seu aço nas estruturas do Viaduto do Chá (SP). Lobato dizia entretanto que o Brasil não deveria exportar minério, mas sim aço forjado, e até citava a diferença em números para a época. Quanto à conservação dos bens para proveito futuro, esta pérola do raciocínio subdesenvolvido, Lobato se perguntava se Cunhambebe deveria, em 1499, ter poupado suas pacas para os netos, em vez de comê-las naturalmente, privando Cabral, um ano depois, de um churrasco e tanto.

Consideremos, por exemplo, o caso da Amazônia, onde esta mentalidade é a causa primeira da devastação, manifestada sempre com o mesmo procedimento: você têm uma superfície contendo uma riqueza vegetal inigualável, seja como biossistema, seja como subsolo, mas não tem a propriedade, ou tem documentos forjados de propriedade. A consciência dessa precariedade liquida com o capitalismo no seu subconsciente de explorador, mas mesmo assim você deseja explorar para se beneficiar da riqueza. Se fosse proprietário legalizado e lhe fosse permitido explorar, você como capitalista teria que desenvolver um método de transformar a exploração em algo contínuo, não exaurível no curto prazo. Mas pensar a longo prazo significa estar sentado sobre o trono da legalidade e não no tripé da incerteza, portanto, teria que racionalizar o uso da mata. Ali a mentalidade é outra — deve-se proibir terminantemente qualquer tipo de exploração e comercialização dos produtos da selva (a menos dos autorizados para os amigos), em consequência, é melhor queimar tudo e usar a terra para a agricultura. Logo, o que está acelerando a destruição da Amazônia é exatamente esta mentalidade punitiva, proibitiva, persecutória.

Alguém duvida do que fariam os suecos, canadenses e quetais se administrassem os bens da floresta? Teriam acaso a mesma irracionalidade dessa gente do Ibama? Ainda não se percebeu que a depredação é resultado do modelo de Estado? Como pretender que exista uma atividade econômica planejada, organizada, estruturada em um ambiente em que a propriedade foi fraudada, não tem dono ou dela nada se sabe? Como pretender uma economia no meio do bandoleirismo, da lei do mais forte e da intimidação? Como legalizar uma atividade cuja empresa precisa apresentar certidão negativa de débito com o INSS, o FGTS, etc, para um órgão que se localiza a centenas de quilômetros de sua sede?

Até quando vai continuar esta comédia da devastação ambiental? Até quando vamos continuar tendo que suportar tanta mentira? Pois se as causas da devastação estivessem apenas no povo que freneticamente abate árvores, então poderíamos pensar em resolver o problema com a prisão do povo amazonense, ou será que existe uma relação entre o povo e o Estado que lhe baixa o relho? Acaso não é a falta elementar de um modelo de legalidade (propriedade, segurança, desburocratização, regulamentação da exploração vegetal, etc) que precisa ser criado para salvar o que resta da floresta?

Diversas obras argumentam que o subdesenvolvimento é uma mentalidade.HARRINSON, Lawrence E. Subdesenvolvimento é um Estado de Espírito. BANFIELD, Edward. The Moral Basis of a Backward Society Mas, na verdade, o subdesenvolvimento não é uma mentalidade, é uma ciência, e uma ciência preciosa. Ela implica num alto nível de argumentação rocambolesca para conciliar interesses bem conhecidos com as práticas um tanto contrárias do capitalismo avançado sob o argumento de variáveis locais, ou de qualquer outra asneira. Lobato chamava de esoterismo científico as alegações de Victor Oppenheim (Departamento Nacional de Produção Mineral) de que não existia petróleo no Brasil.

Para todo o lado do panorama nacional, vemos o exercício vitorioso dessa prática. Um exemplo de esoterismo econômico é o tal de Comitê de Política Monetária (COPOM) do Banco Central, encarregado de definir a taxa de juros com que a viúva paga seus financiadores. O COPOM é o responsável pelo estado confuso do jornalismo econômico brasileiro.

Para o COPOM, os juros devem subir sempre que a demanda interna está muito elevada e "dá sinais de aumento inflacionário". Em qualquer país desenvolvido, o aumento da demanda interna é celebrado com salvas pelo crescimento econômico. Se a demanda interna diminui, os juros caem ainda mais para fazer as pessoas gastarem. Entende-se que uma inflação de demanda logo se acomoda mais à frente, e que, portanto, nem é preciso contar. No Brasil, como o semicapitalismo precisa competir (e triunfar) sobre o capitalismo, sempre que houver aquecimento da demanda, significa que o país está crescendo e "é preciso colocar um freio nesse progresso". E aumentam-se os juros.

Para essa mentalidade, o progresso é um veneno para o país. Logo a demanda cairá pela barbaridade do reflexo nos juros do crediário, e todos podemos ficar contentes. Com isso, aumenta-se em 3% a taxa de juros para derrubar em 2% a previsão de inflação. Existe alguma teoria econômica que suporte um procedimento desses?

Existem 4 ou 5 explicações para o Brasil deter o campeonato mundial de juros altos. Nenhuma delas contempla a verdadeira causa, por falta de espírito sistêmico: os juros são altos para que a remuneração dos financiadores (eu e você que temos uns caraminguás na poupança, e eles que têm os seus milhões) seja muito maior do que a remuneração da atividade capitalista. Convenhamos: se os juros no Brasil fossem, não digo chineses, de 0,25% ao ano — que graça, crescem 10% ao ano com estes juros e nada disso se fala por aqui, mas norte-americanos (3,5 a 5,5% a.a.), nossas elites iriam ficar muito inferiorizadas e até mesmo se verem obrigadas a investir neste maldito capitalismo. E, tremendo de medo do risco não dar certo.

Portanto, é muito melhor deixar o dinheiro no banco, quando a remuneração é melhor, do que fazer qualquer investimento produtivo. Ponto final. No Brasil, se alguém pretende baixar os juros deve em primeiro lugar eliminar todos os impostos embutidos neles. Os juros nunca vão baixar enquanto as taxas estiverem nos montantes brasileiros. Em consequência, o COPOM está para o mercado financeiro como o MST para a agricultura. Um combate o capitalismo pelos juros, o outro combate o agribusiness com a exaltação da jecalândia.

Podemos concluir que o parasitismo não é só um fenômeno estatal, ele é parte de toda uma hierarquia que descobriu uma maneira muito melhor do que empreender: viver dos juros do governo.

Se você algum dia pensou que os inimigos do capitalismo estão na esquerda — pode tirar o cavalo da chuva — a 'Frente Ampla' é muito maior do que você pensa. Enquanto isso, espera-se que um dia o Brasil descubra que sua saída está na ciência e tecnologia: quanto tempo vai levar para descobrir o caminho da virtude e decuplicar os investimentos nesta área? Talvez nunca. Talvez ciência e tecnologia sejam apenas um apêndice secundário da atividade econômica do Brasil.

Cultura da imitação

O semicapitalismo não produz (ou produz com custos oligopolizados), e portanto não lidera — é uma cultura passiva, que preenche a negação do empreendedorismo com banalidades. Ao acomodar modos de vida feudais com o presente, o semicapitalismo não possui interesses coletivos, não sabe se situar estrategicamente como sistema capaz de criar poder (no sentido tecnológico), e portanto se dissipa na imitação.

Mas a imitação representa um nível altíssimo de falta de autoconfiança. A imitação pura e simples é uma confissão de incapacidade de ter sua própria identidade, e identidade significa necessidade das elites de se basearem em si mesmas, em suas próprias atividades. A imitação quer dizer elites que não vivem do empreendimento, da transformação, da criação e da invenção, mas simplesmente da passividade ociosa do doutorismo e do rentismo.

Um dos 'chefs' franceses que fez carreira no Brasil — Laurent Suaudeau —, em entrevista ao Estadão (19-12-04), disse que não conseguia vender um de seus pratos prediletos 'pato ao tucupi' devido à rejeição ao nome do prato. Indignado com a sensação de sentir na pele o preconceito escancarado do brasileiro pelo que lhe é direito disse: "Lembro que tentei incluir 'pato ao tucupi' no cardápio e foi rejeitado. Só começaram a pedir quando mudei o nome para 'canard à l'essence d'orange'.

Este mesmo 'chef' depois afirmou que os pratos com nomes brasileiros começaram a ter maior aceitação. Mas não será uma situação provisória? Não será um interlúdio cultural pós-privatização? Aumente em 50 mil vagas o funcionalismo público e a nova geração vai rejeitar o 'pato ao tucupi'. Observe o presidente Lula e seu vinho 'Romanée Conti'. Não deveria um presidente 'representante do povo brasileiro' beber somente vinhos nacionais?


Relação entre sub e semicapitalismo

Quase todos nós crescemos ouvindo falar de estórias de água no leite e de mistura de milho no café. Provavelmente não exista uma cidade no Brasil sem uma fabriqueta de subúrbio destinada à fraude. A cultura da imitação não se trata apenas de uma retórica de gestos e mundanismo social, mas sobretudo de um modo de produção na sociedade. A imitação não é feita para colocar uma mercadoria em condições de competição no mercado, ao contrário, ela é endereçada a uma sociedade empobrecida que precisa dar preferência ao preço no lugar da qualidade do produto.

O modelo é quase sempre assim: uma grande empresa (em geral uma multinacional) lança um produto, digamos, uma fita isolante. Logo a seguir aparecem os produtos dos empresários nacionais, normalmente uma fita isolante sem cola, ou tão fina cuja película rebenta ou não chega a isolar, mas cujo preço fica em menos da metade da multinacional. Está feita a competição. Essa inversão só se justifica pelo endereçamento da mercadoria a uma sociedade empobrecida. O empresário então contempla sua mercadoria na prateleira e diz — "está vendo? consigo bater os gringos!".

Como mostra Lobato em 'A Fraude Bromatológica', nossa desastrada indústria de fundo de quintal não seria tão carente de qualidade e engenharia se não houvesse a montanha de taxas, emolumentos e impostos que colocam qualquer pequena empresa na ilegalidade. (Atualmente a ilegalidade venceu em 60% da força de trabalho, mas nem essa percentagem descomunal serve para mudar o sistema).


Vigiar e Punir

E se não houvesse o fisco municipal, estadual e os diversos fiscos federais a se fartarem com desmandos burocráticos no propinoduto da indústria de multas?

O resultado da baixíssima qualidade tecnológica, e do mau caráter generalizado de produtores, não se explicaria senão pelas relações predatórias do Estado sobre a sociedade. Se tivéssemos um Estado organizador, facilitador, voltado para o crescimento da produção e do bem estar social, muito pouco da cultura espetacular da fraude empresarial ocorreria.

Em vez disso, temos um Estado cujo modelo organizacional é punir, multar, confiscar documentos, prender pessoas, fechar estabelecimentos, seja no cumprimento de leis, regulamentos ou portarias da cultura papelífera doutoral. O resultado é uma economia paralela, escondida, desconfiada, improvisadora, desonesta, precária, como muito bem escreveu Lobato em 'A Fraude Bromatológica'.

FIM

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

2) Semicapitalismo brasileiro

Carlos U Pozzobon

O semicapitalismo é formado por duas exigências fundamentais: monopólios públicos e/ou privados de empresas, empregos e serviços, e economia dirigida. O estatuto legal dentro da lógica cartorial garante sua existência. Entendido como uma aberração da sociedade feudal encravada nas sociedades modernas, o semicapitalismo é um sistema de alianças e de distribuição de direitos, majoritariamente criado pelo sistema político e suas peculiaridades de representação. Do ponto de vista político, é chamado de fascismo, mas do ponto de vista econômico, é chamado pelos estudiosos de mercantilismo. O fascismo é um modelo de organização política cuja principal ordenação social gravita em torno do Estado. O mercantilismo é a economia dirigida, ou seja, aprovada e protegida pelo aparelho legal do Estado.

Analisando um pouco sua composição social, antes de entrar na fisiologia do sistema, o semicapitalismo brasileiro é composto pelo sistema estatal e pelas inúmeras e infindáveis ordenações compulsórias que vivem do estatuto legal aprovado pelo sistema político de representação, mas claramente repudiado pela sociedade.

Através da máquina posta em ação pelo sistema estatal, o semicapitalismo ocorre:
1. No mundo do trabalho — pelos sindicatos, órgãos de representação profissional como CREAs, CRASs, CRMs, etc.
2. No mundo das finanças — pela proteção ao sistema bancário, seguros obrigatórios, taxas de intermediação, etc.
3. No mundo estatal — pela burocracia arrecadadora encarrapatada na proliferação de impostos, taxas, contribuições compulsórias, etc.
4. Pelos despachantes, que com sua habilidade papelífera intermediam o cidadão com a burocracia.
5. Pelas empresas fornecedoras do Estado — um contingente empresarial que abrange mais de 50% do PIB nacional e cuja participação no mercado estatal é garantida por estatuto supostamente legal, mas efetivamente por vínculos políticos que garantem contratos, e pelo formalismo de concessão de licenças, certificações, burocracia de certidões, comprovantes de custos altos para manter o resto da sociedade afastada da "competição" das licitações.
6. Pelos milhares de cargos políticos nas instituições representativas do país.
7. Pela indústria de certificações, inspeções, etc, que são contigenciadas como "autorizadas" pela máquina regulatória.

No passado, o semicapitalismo evoluía com a simples criação de empresas estatais — era seu período dourado. Bastava a carta de um político e o emprego estava garantido. Atualmente, embora acossado pelas privatizações em algumas áreas, continua intacto quando envolve a burocracia do Estado. A manutenção desta estrutura, com cerca de 50% da vida econômica do país, é fundamentada nos seguintes parâmetros sistêmicos clássicos:
1. Estabilidade do servidor público e sua vitaliciedade no emprego que, no dizer de Lobato, degeneravam em calamidades vitalícias.
2. Garantia de direitos exclusivos ao servidor público resultando em vantagem de benefícios relativamente ao resto da sociedade.
3. Modelo de fragmentação tributária garantindo a expansão permanente da burocracia pela ocupação cada vez maior de pessoas nas atividades autorizadora, licenciadora e certificadora.
4. Direitos adquiridos, entendidos da seguinte forma: se os direitos forem quantitativamente melhores do que outro padrão no resto da sociedade. Por exemplo, aqueles direitos universais e válidos para todos.

Mas isso não tem nada a ver com o Brasil, pois aqui os direitos adquiridos foram colocados por baixo do pano na Constituição de 1988, entendendo-se por benefícios que não são iguais para todos, instituídos em legislação específica, como a insalubridade ou coisa parecida. O resultado foi o entendimento jurídico de que a sociedade é desigual e assim deve ser entendida. Isso deu origem à noção de que vivemos em um regime neoescravista, válido para aposentadorias, benefícios, isenções, impunidades, etc.

Não pode haver direitos adquiridos em uma sociedade que já realizou seus ideais de igualdade no século XVIII. Nos textos de Lobato encontramos seu repúdio visceral à existência de direitos adquiridos no Brasil, já nos anos 20, portanto como reflexos do Brasil recém saído da escravidão. Quase 100 anos depois, o mesmo estatuto jurídico do início do século vinte garante o apartheid social.

Estabilidade no emprego

Elemento importante no modelo de autoridade do sistema, a estabilidade foi criada para proteger o Estado do descalabro de seu sistema político. Foi confundida com o profissionalismo da gestão pública para resguardar os servidores do mandonismo político, das perseguições ideológicas, mas acabou protegendo os carrapatos orçamentívoros, o imarcescível parasitismo estatal indiferente à ética da responsabilidade e da racionalidade da produção e desenvolvimento econômico do Estado.

A estabilidade do servidor público equivale a um monopólio na esfera do trabalho, ao mesmo tempo em que uma estatal representa um monopólio na esfera da atividade econômica.

Para poder estar acima do sistema democrático, e ficar independente da autoridade eleita, portanto à margem da democracia, o Estado precisa estar garantido contra a intervenção dos eleitos pelo povo, até porque a maior parte dos eleitos quase sempre é uma tragédia política: a solução foi a estabilidade no emprego público. E o resultado, um Estado completamente insensível à precedência da liberdade sobre o arbítrio, dos direitos individuais sobre a fúria coercitiva regulamentadora e do desenvolvimento econômico frente às múltiplas moralidades paralisantes, tais como o ambientalismo, a reforma agrária, etc.

O Estado não nos lidera por aquilo que ele prega, pois ninguém do lado de fora acredita no que se fala lá dentro, mas por aquilo que oferece aos seus servidores, que nada mais é do que uma corrida incontrolável de pessoas para a ocupação de seus postos, sem condições de igualdade com as mesmas oportunidades de trabalho na vida privada. Trata-se de uma inversão da liderança, isto é, ninguém acredita no Estado, e, ao mesmo tempo, todos querem uma fatia dele.

As pessoas querem os cargos públicos pela estabilidade (monopólio do cargo), pela possibilidade de ascensão segundo critérios meramente simbólicos, pela tolerância com a baixa (ou nula) produtividade, e por estarem submetidas a relações de autoridade meramente formais, onde os chefes não são responsáveis pelos subordinados (e, portanto, não respondem solidariamente pelos seus atos) e os subordinados não precisam prestar contas de seus atos e erros na proporção direta do escalonamento burocrático.

Vigora o sistema de persuasão, em lugar do sistema de coerção de resultados exigidos pelo capitalismo. Isso garante a dolce vita do funcionalismo: faz se quer, diz que faz e não faz, deixa para amanhã. Evidentemente que do ponto de vista formal pode-se argumentar o contrário. Mas o formalismo é apenas uma técnica de dissimulação: o que vigora é o Brasil real, e a estabilidade é o grande escudo contra os ataques da autoridade eleita pelo povo.


Garantia de direitos exclusivos

A obtenção de vantagens sobre o resto da sociedade está relacionada ao ativismo político de seus representantes. Trata-se de uma mobilização política de atos legislativos discricionários garantindo o atendimento de reivindicações que mantenham o espírito de importância e supremacia do ego corporativista sobre o restante da sociedade. Assim, é possível conseguir supremacia sobre o capitalismo na obtenção dos benefícios que este não concede, desde que a auto-importância seja inflada e adulada.

Direitos exclusivos significam uma medida importante de avaliação de sucesso pessoal no semicapitalismo. Significam ainda desfrutar de alguma coisa que os outros não têm, o que permite comparações lisonjeiras e o triunfo do ser no cargo com honrarias que compensem a vacuidade da rotina papelífera e carimbadora.

O semicapitalismo se caracteriza por 4 fatores principais:

1. Modelo de autoridade
2. Estilo de monopólio
3. Ideologia da diferença
4. Modelo de representação

1. Modelo de Autoridade

Uma autoridade significa latu sensu o poder de coerção de un(s) sobre os outro(s). Todos nós sabemos a relação entre autoridade e autoritarismo. Ou melhor, quase ninguém sabe. No Brasil, a confusão é total. Chama-se autoritário um dirigente político que pregue a demissão de um departamento inteiro de uma prefeitura, por absoluta falta de fundamentos, ou que puna subordinados com comprovada falta de assiduidade, ou que interfira no trabalho desses mesmos subordinados.

A imprensa chama de autoritária uma pessoa que solicite um plebiscito para resolver um assunto de interesse público (e não assuntos relativos à reeleição de presidente da república). E, diariamente, repete a mesma ideia de que vivemos num sistema representativo, e que portanto os atos políticos são totalmente legítimos, já que vivemos numa democracia plena.

De repente, a imprensa se esquece de tudo o que disse e passa a especular sobre as incoerências do nosso sistema representativo, fazendo coro aos que pregam uma reforma política. Isso não é novidade, mas apenas consequência do lado bifronte do brasileiro. O choque de sistemas sociais só poderia nos agravar o costume inconsciente da personalidade dupla. Por exemplo, por um lado, achamos um absurdo a violência policial contra os cidadãos, mas achamos natural que bandidos sejam fuzilados sumariamente pela polícia. Em consequência, o modelo de autoridade oscila entre o pilatismo (o lavar as mãos) e a truculência.

O modelo de autoridade é uma engenhosa construção legal para impedir que os eleitos possam direcionar as políticas públicas seguindo os programas partidários. Ora, a democracia foi concebida para que os eleitos assumam a coerção sobre a máquina pública na implementação de políticas e no exercício da administração. Mas bloqueada pela inamovibilidade, a política se transformou num teatro de faz de conta, de despistamento, de dissimulações. Nesse ambiente, os bons governantes são como os bons samaritanos: precisam do despertar da apatia dos funcionários para a conversão em ativismo governamental.

Não há prefeitura no Brasil em que não se encontrem departamentos completamente sucateados por gente cuja maior ocupação é justamente inverter a ordem natural das coisas. E a inversão só é garantida se o ambiente permite a proliferação das corriolas, das camorras e camorrinhas amparadas por direitos (e despeitos) que os eleitos não podem revogar. Outro aspecto da crise de autoridade no mundo da administração pública é a troca da esfera de decisão. Em qualquer estado moderno, as questões administrativas são tratadas única e exclusivamente no âmbito da administração. Por uma confusão intelectual, e interesse em proteger o aparato corporativista do resto da sociedade, foram repassadas ao Judiciário as decisões no âmbito administrativo, provocando a tragédia do modelo de autoridade atual.


Este lento avanço corresponde ao entendimento banal e equivocado de que o papel do Judiciário é resolver conflitos de opiniões entre os membros da sociedade, e, portanto, vão a julgamento as questões administrativas de praxe, tornando a administração pública um mero faz de conta. Ora, o Judiciário existe para resolver problemas jurídicos, e não para resolver problemas administrativos.

Essa usurpação de poderes é talvez o lado mais falho do nosso modelo social implantado pela Constituição de 88. Considere — como um exemplo entre dezenas — a questão dos aparelhos celulares nos presídios. Alguém acredita que em prisões americanas traficantes de drogas tenham acesso a celulares nos presídios? É claro que não. No Brasil, a administração penitenciária não consegue evitar que seus detentos tenham acesso a celulares porque seus advogados não só entram e saem a hora que bem entendem dos presídios, como também transitam com o que querem para dentro e para fora deles, para não falar do resto. E por quê? Porque liminares garantem suas vontades em detrimento do que possam pensar e agir os encarregados da administração.

Portanto, trata-se de uma usurpação de autoridade em que o Judiciário comanda o que deveria ser atribuído à administração, imiscuindo-se onde não deveria, como acontece em qualquer democracia de primeiro mundo. Ora, isso às vezes chega à beira do ridículo, quando uma universidade pública marca a data do vestibular e um figurão, incomodado com a atrapalhação em suas férias por causa dos filhos vestibulandos, consegue alterar a data do vestibular com uma liminar, sem qualquer respeito à autoridade administrativa.

A confusão entre o que é jurídico e administrativo comprova não só a falência do nosso modelo, como também serve de estímulo à imoralidade transgressora dentro da administração pública. Esse regime de exceção, tão galopantemente implementado no pós-ditadura, é um dos pontos viscerais da impotência do Estado na execução de qualquer política pública, e paradoxalmente referendado dia-a-dia pelas meias-cabeças no Congresso Nacional.

2. Estilo de monopólio

Uma das características mais importantes do semicapitalismo é a expressão cunhada por Lobato na campanha do petróleo: "o governo NÃO FAZ E NEM DEIXA FAZER". Lobato demonstra incansavelmente que o governo não só impedia as empresas privadas brasileiras de explorarem petróleo, como também se recusava a assumir a sua exploração, entregando-se à conspiração dos interesses ocultos, representados naquela época pela política monopolística traçada pela Standard Oil e associadas.

Tempos depois, e sob o fracasso de fornecimento de gasolina na II Guerra Mundial, Vargas cria a Petrobras com a finalidade de ser um monopólio na exploração e refino do petróleo, seguindo o modelo siderúrgico iniciado em Volta Redonda. Novamente, os brasileiros são deixados de lado por mais de 50 anos. A esse modelo seguem-se os modelos energético, ferroviário, de saneamento e o de telecomunicações.

Se os monopólios garantiam a exclusão de empreendedores nacionais privados na exploração de recursos, uma política equivalente deveria ser oferecida aos seus funcionários. Criou-se então o monopólio sobre o emprego, uma garantia que fizesse dos perigos da democracia representativa um instrumento meramente ilusório para inserir o país na corrente mundial da democracia, sem que esta pudesse ameaçar a natureza feudal de seu sistema público. É por isso que Huntington em seu 'Choque de Civilizações' afirma que a América Latina não pertence à civilização ocidental e cristã. E é por isso que entre as cabeças ilustradas do primeiro mundo, o Brasil não passa de uma piada organizacional, e ainda quer ocupar uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU...

3. Ideologia da diferença

Ora, o sistema público não se moderniza porque se mantém atrelado à ideologia da diferença: diplomatas, juízes, militares, previdenciários e até metroviários acham-se diferentes. Ninguém suporta a invenção moderna do princípio da igualdade. O resultado é a doutorice, Veja no Menu deste site a seção Lobato Essencial: artigo sobre 'Doutorismo' analisada tão lucidamente por Lobato em 'Mundo da Lua'.

4. Modelo de representação

O modelo de representação diz respeito à organização dos partidos políticos, sindicatos, associações paraestatais, como os órgãos de classe, etc. No semicapitalismo, esse modelo trata de uma relação em que ser representante significa livrar-se da posição em que se está para ascender a uma posição privilegiada — não apenas em salário, mas também em posição e em pequenos (ou grandes, conforme o caso) privilégios —, que nunca guardam relação de reciprocidade com a atividade privada. Se você olhar para o desfile de deputados no Congresso Nacional e se perguntar onde estariam e o que estariam ganhando aquelas Vossas Excelências se não estivessem lá, poderia entender como na vida política não existe nenhum altruísmo. O modelo de representação não se esgota na superficialidade de uma reforma política há tanto tempo apregoada e logo encerrada em 2 ou 3 salamaleques legais.

O modelo de representação foi elaborado tendo em vista o fato da maioria da sociedade civil não estar no Estado, e este mesmo Estado representar a si mesmo como maioria. Tarefa difícil, mas não impossível, basta que se cumpram algumas exigências prévias.

Primeira: o político tem que se sentir membro do Estado e não da sociedade.
Segunda: a liberdade dos políticos em determinar seus próprios salários e benefícios está relacionada com a aceitação de que o Estado é diferente da sociedade e todo o aparato de autoridade deve ser arranjado para esta finalidade. Como o sistema não representa toda a sociedade, a solução para o problema de representação consiste em fazer com que o funcionalismo tenha preponderância no exercício dessa representação.
A representação produz uma expansão curiosa no tecido estatal, por exemplo: a cada 2 anos, os funcionários conseguem licença de 3 meses para agir como candidatos ou cabos eleitorais de candidatos. A imprensa noticiou o aumento de 700% nos pedidos de licença, somente entre professores do RS, para fins de candidatura aos pleitos municipais entre 2002 e 2004 (alguma relação com a queda da qualidade do ensino?). A expectativa parece ser bastante animadora para os professores (e funcionários), pois uma vitória permite um salto no salário, no caso de mandato parlamentar ou executivo, e no caso de cabo eleitoral, uma vitória do preposto oferece a possibilidade de um salário extra como assessor parlamentar, burocrata da máquina pública e tantas vaguinhas mais.
Terceira: liberdade para loteamento da máquina pública para fins de arregimentação de força eleitoral, ou seja, uma perversão da autoridade: o político nomeia, mas não pode demitir. Ao nomeado basta a esperteza de ler as leis para ascender salarialmente. Depois, um processinho na Justiça e os benefícios vão subindo, na maior cara de pau, já que "daqui não saio, daqui ninguém me tira".

O modelo de representação atual está profundamente relacionado com o voto obrigatório. Se o voto não fosse obrigatório, uma lei eleitoral teria que estabelecer os quocientes eleitorais e os procedimentos de legitimidade para ocupação dos cargos. Obviamente que o não comparecimento às urnas demoliria a aposta na supremacia dos ignorantes sobre os ilustrados (cuja proporção em números aumenta estratosfericamente a cada ano), dos desinformados sobre os informados, dos desinteressados sobre os interessados. Os políticos teriam que convencer os eleitores a ir às urnas e isso não se faria sem a contínua prestação de contas de seus mandatos. Mas nada disso acontece com o voto obrigatório. O voto cai de lambuja na urna (e no bolso) dos políticos, vindo de gente que nem sabe em quem votou, odeia votar e tem raiva dos próprios políticos que elegem. E eles sabem disso.

fim